#MulhereSemPrisão: reflexões sobre identidades de gênero nas audiências de custódia

Este texto é a segunda publicação da série MulhereSemPrisão: Audiências de Custódia. A partir de observações realizadas durante o acompanhamento de audiências de custódia, abordaremos aspectos relativos às identidades de gênero de pessoas indiciadas, com o objetivo de estimular reflexões sobre sua influência na conduta dos atores institucionais envolvidos.

Um dos casos acompanhados, no início de 2018, pela equipe do Programa Justiça Sem Muros durante a realização da pesquisa de campo, foi bastante representativo de como as normas de gênero são operacionalizadas pelo sistema de justiça criminal.

Duas pessoas foram levadas a uma audiência de custódia, aparentando se tratar de um homem cisgênero¹ e de uma mulher, também cisgênero.  No entanto, ambas foram interpeladas por prenomes femininos: *Joana e *Carina². Joana vestia roupas socialmente atribuídas ao feminino, possuía cabelos longos, era negra. Ela era companheira de Carina, também negra, cabelos raspados, bigode, e vestia roupas socialmente atribuídas ao masculino.

O casal estava sendo acusado de tráfico e fora apreendido com uma quantidade pequena de maconha. O juiz, após explicitar a finalidade daquela audiência, iniciou pela qualificação de Joana, perguntando sobre seu endereço de moradia, escolaridade, se era usuária de drogas, se possuía antecedentes criminais, e se possuía filhos e de que idade. As mesmas perguntas foram feitas em seguida à Carina, com exceção da existência de filhos.

A partir disso, é possível refletir sobre duas questões: em primeiro lugar, Carina, apesar de socialmente poder ser identificada como homem, não foi demandada sobre a possibilidade de possuir um nome social – aquele pelo qual pessoas transexuais e travestis se identificam e são identificadas pela sociedade.  

A segunda questão decorreu da análise dos autos do processo. Carina, a quem não foi perguntado sobre a existência de filhos, em verdade possuía um, menor de 12 anos. Em narrativas como essa, a conduta dos atores institucionais na reprodução de estereótipos de gênero merece atenção. É possível que o motivo pelo qual Carina não tenha sido indagada, no momento da audiência, sobre uma eventual maternidade seja por expressar atributos socialmente designados ao gênero masculino.

Nesse sentido, podemos refletir, por exemplo, sobre a aplicabilidade do Marco Legal da Primeira Infância ao caso, com a consequente possibilidade de converter a sua prisão preventiva em prisão domiciliar. Pode-se, assim, atribuir ao instituto jurídico da prisão domiciliar, como hoje aplicado, o “rótulo” de medida adequada somente a mulheres socialmente entendidas dessa maneira, ou seja, que performam um lugar específico e socialmente designado à mulher?

A valorização do cuidado das crianças, independentemente do gênero

A consideração do cuidado como determinante à prisão domiciliar ganhou destaque na histórica decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus coletivo nº 143.641/SP. Ao ser concedida a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar “de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda”, o STF garantiu a todas as mulheres o exercício de cuidado de seus filhos, o já previsto direito de cumprir sua pena em regime domiciliar.

Ademais, o próprio Código de Processo Penal, nos incisos III e VI de seu artigo 318, também dispõe, respectivamente, sobre a possibilidade de concessão da prisão domiciliar a qualquer pessoa imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência, ou a homens que sejam os únicos responsáveis pelos cuidados de filho de até doze anos incompletos.

Vê-se, assim, que em momento algum as pessoas transexuais, sejam homens ou mulheres, foram excluídas das previsões legais ou jurisprudenciais, sendo a substituição da prisão preventiva pela domiciliar a elas igualmente possível.

Contudo, não é o que se observa na prática forense. Casos como o relatado no presente artigo tornam evidente como o controle dos elementos de gênero pelos atores institucionais influencia, de forma ainda mais perversa, as decisões tomadas sobre as vidas de pessoas que vivenciam suas identidades de gênero de maneira contrária ao considerado “natural”.

Questões essenciais à identidade de pessoas transexuais e garantidas por diversas normativas oficiais, como o nome social³, são sistematicamente desrespeitadas, e elementos como a existência de filhos são muitas vezes desconsiderados, conforme demonstrado neste texto.

As questões aqui tratadas representam apenas uma das diversas variáveis que influenciam a dinâmica das audiências de custódia, observadas no decorrer de mais de quatro meses de trabalho de campo nos fóruns criminais da região metropolitana de São Paulo. O próximo texto da série #MulhereSemPrisão: Audiências de Custódia continuará abordando a temática da violência no flagrante, com enfoque principal em revistas vexatórias perpetradas por agentes estatais.

 

¹ Pessoa cisgênero é aquela que se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer, ou seja, que vivencia uma concordância entre a identidade de gênero e a identidade a ela atribuída no momento de seu nascimento.

² Nomes fictícios.

³ Em 2004, com o lançamento do “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual”, o debate se intensificou, sendo seu uso recomendado a partir de então em inúmeros serviços públicos e instituições. Ademais, o uso do nome social é garantido, desde 2010, pelo Decreto nº 55.588 do Governo do Estado de São Paulo, e, desde 2014, pela Resolução nº 11 da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.

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set 10, 2018 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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