A rotina das revistas vexatórias na Fundação Casa

 

Antes de entrar na fila de visitas das unidades da Fundação Casa, em São Paulo, mães e irmãs, crianças e senhoras, não importa a idade, precisam levar em conta uma longa sessão de humilhações para visitar seus parentes. Replicando o modelo das unidades prisionais, o processo das revistas vexatórias começa em uma cabine diante do funcionário da unidade. As mulheres são obrigadas a tirar roupa e a abaixar-se três vezes. Quando há desconfiança, elas precisam mexer em suas partes íntimas e assoprar o braço com força para ver se não cai algo de dentro de seus corpos. Em certos casos, jovens internos relatam que funcionários se aproveitam da situação para depois provocar ou punir os adolescentes descrevendo a anatomia de seus parentes.

O manual ensina os funcionários como proceder (ver abaixo). Na prática, em vez de coibir a entrada de artigos proibidos, o resultado principal é a revolta. Os dados de 2012 e primeiro semestre de 2013 referente aos equipamentos da região do ABCD apontam que, dos 16 mil procedimentos de revista ocorrido no período, não houve caso relevante de apreensão. Parecer médico feito a pedido da Defensoria aponta que as revistas são inócuas.

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A Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo e a Rede Justiça Criminal colheram depoimentos em vídeo de familiares de internos. Até mesmo crianças falam da vergonha que sentiram ao passar pelas revistas.

Na semana passada, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que prevê o fim das revistas vexatórias nas unidades prisionais do Estado, medida que se estende também para as unidades da Fundação Casa. O projeto, do deputado José Bittencourt (PSD), depende ainda da sanção do governador Geraldo Alckmin (PSDB). O governador disse que ainda estuda se vai sancionar a lei e ponderou que os equipamentos de scanner corporal são muito caros.

A insistência na revista vexatória em parentes de adolescentes e de adultos tem sido uma entre tantas políticas públicas que vêm ajudando a tornar o ambiente da Fundação Casa cada vez mais parecido com o das prisões, com efeitos perversos para os jovens e para a sociedade. Na opinião de autoridades e estudiosos, esse contexto leva os internos a se habituarem aos códigos do crime dos adultos e os direciona para as carreiras criminais em São Paulo, setor da economia que está sempre com vagas abertas para aqueles com apetite e raiva.

Se o adolescente ficar internado por um ano, ao final da medida ele terá feito mais de dois mil e quinhentos procedimentos de revista…

Pesquisas feitas no sistema vêm mostrando resultados preocupantes. Além dos muros, grades e da vizinhança com Centros de Detenção Provisória, a localização dos equipamentos socioeducativos em cidades distantes obriga muitos parentes de adolescentes internados a dependerem do ônibus garantido pelos “irmãos” do Primeiro Comando da Capital. Depois de ter o filho sentenciado, em vez de se aproximar dos funcionários do Estado, o relacionamento que acaba se estreitando é com os integrantes do Partido do Crime.

Do lado de dentro das unidades, a rotina para os internos é dura. Entrevistas feitas pela Defensoria constataram que eles são obrigados a se submeter a inúmeros procedimentos de revista íntima após cada movimentação nos equipamentos – quando deixam o dormitório, vão se alimentar, etc. O número de procedimentos pode variar por unidade, mas, segundo a Defensoria, a média é de sete revistas por dia.

Como atualmente existe cerca de dez mil adolescentes internados, calcula-se que sejam feitas perto de setenta mil revistas por dia. “Se o adolescente ficar internado por um ano, ao final da medida ele terá feito mais de dois mil e quinhentos procedimentos de revista. Isso não existe em Guantánamo, nem no Regime Disciplinar Diferenciado, para onde vão os presos adultos considerados de alto risco. O Marcola não passa por isso. É uma imoralidade”, afirma o defensor público Marcelo Novaes.

A adolescência se caracteriza justamente por ser a fase da formação do caráter do indivíduo. Espera-se que o Estado tenha sempre o cuidado de aplicar medidas que busquem reintegrar à sociedade o jovem que comete um ato infracional. A sensação de impunidade não pode vigorar, mas a medida precisa ajudar a encaminhá-lo para o caminho certo, reforçando os laços dele com a família e a comunidade. Foi esse o espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente. Só que não é o que vem ocorrendo no sistema de justiça e segurança pública paulista.

… a sensação é de que a redução da maioridade penal já vem ocorrendo.

A crescente internação de jovens que atuam no tráfico de drogas por juízes do interior, ao contrário do que determina o ECA, é apontada como uma das causas principais da superlotação das unidades. Cria-se uma indústria de internação em massa, repetindo no Judiciário a lógica do nosso sistema de aprisionamento em massa para adultos. É dentro das unidades e das prisões onde aqueles que foram punidos acabam aprendendo os macetes do mundo do crime e ampliando o network com parceiros do lado de dentro de fora. Os sucessivos recordes de roubos em São Paulo mostram como a lógica desse sistema produz resultados desastrosos para a sociedade.

No livro Cadeias Dominadas, a Fundação Casa, suas Dinâmicas e as Trajetórias de Jovens Internos (editora Terceiro Nome), o antropólogo Fábio Mallart, que deu oficinas de fotografia em unidades da Fundação entre 2006 e 2010, época em que também realizou suas pesquisas, identificou três modelos diferentes para ressocializar adolescentes nas unidades da Fundação. Há aquelas em que os funcionários (funças) têm o controle da gestão do dia a dia das unidades. Nelas, os adolescentes andam de mão para trás, com a cabeça baixa, respondendo “sim, senhor” “sim, senhor”, passivos como se fossem robôs, obedecendo à rotina da Fundação. As revistas íntimas nos internos são rotineiras.

As “cadeias dominadas” são as unidades lideradas por jovens que seguem as determinações do Primeiro Comando da Capital (PCC). Nesses equipamentos, podem [existir] desde as “rezas” do partido até as rígidas hierarquias em que se reproduzem os postos de comando existentes nos presídios. O terceiro modelo é aquele em que o poder de gestão do cotidiano está em disputa.

Com a reprodução do modelo prisional em muitas unidades da Fundação Casa, tanto pelo sistema de justiça como pelo de segurança pública, a sensação é de que a redução da maioridade penal já vem ocorrendo. Com muito dinheiro sendo gasto para piorar o caráter do adolescente e mantê-lo no caminho torto que menos interessa para a sociedade.

Outro lado

A Fundação Casa afirmou por meio de nota que a revista realizada nos visitantes e servidores é preventiva e visa impedir eventual entrada de objetos ilícitos nos centros socioeducativos da instituição que possam colocar em risco os funcionários e os adolescentes. Com relação às revistas feitas internamente nos adolescentes, também têm o caráter de prevenção de eventuais ocorrências. Por motivo de segurança, não podem ser dados detalhes da forma como são feitas as revistas.

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Fonte: Ponte

 

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jul 15, 2014 | Noticias | 0 Comentários

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