O ITTC atua na defesa dos direitos de mulheres migrantes em conflito com a lei há mais de 20 anos, promovendo uma série de ações, entre elas o atendimento de mais de 1500 mulheres migrantes privadas de liberdade, além do atendimento a migrantes egressas do sistema prisional, iniciado em 2017, com o Projeto Migrantes Egressas – agora denominado Projeto Mulheres Migrantes. Como resultado dessa ampla atuação ao longo dos anos, foi possível consolidar um Banco de Dados que reúne as informações obtidas através dos atendimentos prestados pela instituição. A fim de divulgar e debater as informações coletadas, a partir de 2019 a equipe do Banco de Dados passou a publicar boletins temáticos visando discutir, de forma mais detalhada, questões que tangem a vida das mulheres migrantes em conflito com a lei.
Para a 13ª edição dos nossos boletins, trouxemos a frequência de mulheres atendidas por país de residência ao longo de 10 anos, entre 2009 e 2018, com o objetivo de refletirmos sobre como as dinâmicas sociais, políticas e econômicas nos países de residência impactam os índices de encarceramento de mulheres migrantes no Brasil.
Nota metodológica: O Projeto Estrangeiras, hoje Projeto Mulheres Migrantes, atua há mais de quinze anos com mulheres migrantes em conflito com a lei, aplicando questionários de forma sistematizada. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionário com 1.493 mulheres. Os dados utilizados a seguir, entretanto, versarão sobre o período de 2009 a 2018, devido ao fato de que 2019 pode ser considerado um ano atípico em termos de frequência de mulheres, uma vez que não foi possível aplicar questionários em todos os meses do ano. |
Desde a década de 1980, o mundo vem enfrentando profundas transformações no âmbito internacional devido, entre outras questões, aos novos tipos de mobilidade do capital e de pessoas. Os Estados e as políticas sociais passam a ser foco dos estudos sobre fluxos migratórios e as esferas de correlação são complexificadas: hoje, consideramos que tanto o âmbito internacional, quanto nacional, e até mesmo o local, incidem sobre as dinâmicas transnacionais. Organismos como a ONU consideram que estas migrações internacionais estão intimamente conectadas ao processo de desenvolvimento, aos índices de pobreza, à degradação ambiental, à fragilidade das dinâmicas de paz e segurança, bem como às situações de violação de Direitos Humanos¹.
A partir dos dados elaborados neste boletim, mostraremos como o transporte de drogas e a prisão das mulheres relacionam-se profundamente com as dinâmicas sociais, políticas e econômicas de seus respectivos países de residência. Para tal, analisaremos os países mais frequentes da amostra em um intervalo de 10 anos, entre 2009 e 2018. Deste modo, destacamos os seguintes territórios: Bolívia, África do Sul, Angola, Tailândia, Espanha, Venezuela, Paraguai, Filipinas, Colômbia e Peru.
Após a crise financeira dos subprimes nos Estados Unidos em 2008, a África do Sul vivenciou uma desestabilização paulatina e bastante duradoura. No entanto, foi apenas a partir de 2010 que o crescimento do país apresentou uma tendência de queda. Como podemos observar no gráfico interativo abaixo, entre 2011 e 2013, o montante de mulheres sul-africanas presas por tráfico de drogas aumentou em 300% : ou seja, de 8 mulheres, em 2011, para 32 mulheres, em 2013. Desde 2014, o governo sul-africano vem emplacando uma série de medidas de austeridade que impactam profundamente nas políticas sociais. Com o passar do tempo, as taxas de desemprego e de pobreza aumentaram a níveis alarmantes, de modo que, em 2015, mais da metade da população vivia abaixo da linha da pobreza. Nesse sentido, o país apresenta um fluxo de oscilações constantes de mulheres presas no Brasil que parece conservar-se a partir do início da crise.
Também após a crise de 2008, a Espanha tornou-se a única grande economia europeia a não conseguir retomar o crescimento. Por este motivo, o país entra em recessão econômica em 2009, seu PIB fecha com um queda de 3,6% e a taxa de desemprego chega a 19%. Nos dados apresentados a seguir, percebe-se que, entre 2009, momento posterior ao início da crise global, e 2010, também houve um aumento no montante de mulheres presas. Por outro lado, desde 2011, o país inicia uma recuperação econômica lenta e o volume de mulheres inicia uma tendência de queda. A partir de então, o número de atendimentos por ano é de aproximadamente uma ou duas mulheres, com um pico apenas em 2014.
Já a Tailândia passou por uma crise política, ligada a um golpe militar, que iniciou em 2006 e se agravou vertiginosamente em 2010, após a irrupção de diversos protestos em prol de eleições democráticas. Estas manifestações foram violentamente reprimidas em Bangcoc, deixando mais de 90 mortos e centenas de feridos. Em acréscimo, a Tailândia também sofreu com a crise da bolha imobiliária americana em 2008. Em 2009, 1,4 milhões de pessoas ficaram desempregadas e a previsão de crescimento do PIB era de apenas 2% no ano em questão. Quando, então, avaliamos a frequência de mulheres Tailandesas atendidas ao longo de 10 anos, percebemos que houve um aumento de 200% nas prisões entre 2010 e 2011 e a quantidade de mulheres permanece no mesmo patamar até 2013, quando as prisões retornam a mesma frequência média do período anterior à crise.
Após a crise financeira mundial, Angola também iniciou um processo de desaceleração econômica, em grande medida ocasionado pela queda do preço do petróleo, principal fonte de renda do país. Esta crise provocou uma profunda escassez de alimentos, a qual gerou, até mesmo, revoltas e saques coletivos a supermercados. Quando observamos a distribuição de mulheres angolanas atendidas pelo ITTC ao longo dos anos, vemos que também há um crescimento de 320% entre 2009 e 2011.
Em 2012, no Paraguai, uma intensa crise político-institucional culminou na destituição do ex-presidente Fernando Lugo e resultou no isolamento político do país em relação ao contexto internacional. A destituição gerou uma série de incertezas tanto de agentes internacionais, quanto da população em geral, bem como levou o Paraguai a ser suspenso do Mercosul até 2013 – ocasião da próxima eleição presidencial. Analisando o gráfico abaixo, percebemos que um aumento expressivo de mulheres presas aconteceu em 2012, após um acréscimo de 650% em relação ao ano anterior.
Na Venezuela, uma grave crise econômica iniciou em 2014, após a queda drástica no preço do petróleo, principal receita do país. Isto associado a uma crise política entre chavistas e a oposição, gerou uma série de profundas consequências negativas: hiperinflação, aumento do desemprego, crise alimentar, diminuição da produção, entre outros fatores. Esta conjuntura deflagrou uma situação de crise humanitária e diplomática, uma vez que um volume enorme de pessoas iniciaram um processo de migração para os países vizinhos, tentando fugir da crise.
Percebe-se, então, que há uma forte correlação entre as crises político-administrativas e econômicas e as prisões de mulheres migrantes. Contudo, além destas, existem diversas intersecções que são capazes de determinar a trajetória destas mulheres. Os fluxos migratórios e, principalmente, o fluxo de tráfico de drogas são influenciados por uma série de relações como, por exemplo, a política de drogas nos países-destino, o contexto socioeconômico dos países vizinhos, a conjuntura internacional etc. Mesmo ainda não sendo possível realizar um estudo sistemático sobre estas outras correlações com a prisão de mulheres migrantes “mulas” do tráfico de drogas no Brasil, ainda assim, tal como podemos observar nos gráficos, é possível afirmar que o encarceramento tem uma conexão direta com o empobrecimento do país de residência.
Além disso, há certos deslocamentos populacionais ligados ao mercado de trabalho. As mulheres bolivianas, por exemplo, ao longo destes 10 anos analisados, apresentam uma frequência de cerca de 14 mulheres atendidas em média por ano. Isto pode se dever ao fato de que há uma migração boliviana relativamente estável na cidade de São Paulo, em virtude do bem estabelecido mercado de trabalho nas confecções de costura, meio pelo qual muitas mulheres são aliciadas com promessas de renda. Isto também pode ser constatado pelo nosso Banco de Dados, visto que 72% das bolivianas em conflito com a lei atendidas viajaram para o Brasil motivadas por proposta de trabalho e renda. Mesmo assim, também há um pico nas prisões de bolivianas em 2011, após a crise financeira mundial, e outro aumento a partir de 2016, após cenário de profunda instabilidade política vinculada ao contexto de renúncia do ex-presidente Evo Morales.
As Filipinas parecem seguir uma tendência de oscilações sazonais ao longo dos anos. Assim como a Bolívia, as mulheres filipinas encontram um mercado já consolidado historicamente. O próprio Estado filipino assume uma política de exportação da força de trabalho como uma das suas principais fontes de renda. Estima-se que 10% da população está trabalhando no exterior e as mulheres constituem a maior parte desta mão de obra migrante. Em São Paulo, elas se inserem, majoritariamente, no âmbito do trabalho doméstico.
A Colômbia é outro país com uma média mais ou menos constante de mulheres atendidas, com apenas dois picos em 2012 e em 2015. Durante muitos anos, a Colômbia vivenciou um conflito armado e uma série de violações de direitos humanos, sem falar nos problemas sociais e econômicos dos contextos locais. Nesse sentido, a migração colombiana é uma das mais presentes na cidade de São Paulo ao longo dos anos. Apesar disso, o volume de mulheres presas não é elevado. Isto pode se dever, no entanto, à distância geográfica em relação à cidade de São Paulo, uma vez que o fluxo migratório da América Latina é dado, principalmente, por vias terrestres, o que explicaria um maior volume de mulheres bolivianas presas em relação ao montante de mulheres colombianas, por exemplo.
A migração peruana também apresenta uma tendência constante de mulheres presas por tráfico de drogas, com apenas um pico em 2015. O fluxo migratório de peruanos já é bem conhecido na cidade de São Paulo e vincula-se à mão-de-obra associada à reestruturação do setor produtivo paulistano. Os peruanos e peruanas estão fortemente presentes no setor de bijuterias e comércio e grande parte do fluxo migratório se estabelece devido a este mercado. Isso também pode ser constatado pelo nosso Banco de Dados, uma vez que 77% das peruanas em conflito com a lei afirmam ter vindo para o Brasil motivadas por proposta de trabalho e renda.
Há também questões de gênero implicadas nas dinâmicas migratórias. A crise humanitária no Haiti, por exemplo, não afetou de maneira significativa o montante de mulheres presas naquele período. Isto pode se dever ao fato de que o fluxo de migração haitiana foi, e continua sendo, majoritariamente masculino: as mulheres deslocaram-se paulatinamente apenas na medida em que seus companheiros ou maridos conseguiam trabalhos mais estáveis. Este cenário difere bastante da situação de algumas das mulheres latino-americanas em questão, na medida em que estas são frequentemente as únicas responsáveis pelo domicílio e muitas costumam migrar sozinhas. Nesse sentido, essas dinâmicas de gênero nos fluxos migratórios impactam diretamente os percentuais de mulheres presas ao longo dos anos.
De qualquer modo, a partir dos gráficos analisados, percebe-se que o encarceramento destas mulheres está fortemente vinculado às dinâmicas de migração mais gerais, tais como os deslocamentos em busca de melhorias socioeconômicas. Cenários de crises, desemprego e fome sobressaem-se como os principais fatores que compõem o pano de fundo de recrutamento dessas mulheres pelo tráfico de drogas. Estes contextos tornam o convencimento das mulheres mais propício aos aliciadores. Muitas dessas, inclusive, tornam-se vítimas de tráfico de pessoas e são forçadas a realizar o transporte da droga, no que directiva da União Européia chamaria de “criminalidade forçada”. Hoje, sabe-se que migrantes e refugiados são alguns dos grupos alvos do tráfico de pessoas, justamente porque muitos encontram-se em uma situação de extrema vulnerabilidade. Quando observamos que o montante de mulheres presas por tráfico de drogas está fortemente associado a crises sociais, políticas e econômicas em seus países de residência, percebemos o quanto o processo de criminalização também é um produto da invisibilização das dinâmicas macrossociais que levam as mulheres àquelas circunstância. No final das contas, essas mulheres migrantes são punidas duplamente: primeiro pelas suas condições de vida e, posteriormente, pelo crime cometido em razão dessas condições.
Notas:
¹ Neide Lopes Patarra. Migrações Internacionais de e para o Brasil Contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005
____________________________________________________________________________
O boletim do ‘Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei’ é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados do ITTC em colaboração com a Coordenação e a nossa equipe de Comunicação. Você também pode receber os Boletins em primeira mão na sua caixa de entrada. Inscreva-se aqui.
Organização: ITTC
Autoria e análise: Phirtia Silva – Pesquisadora vinculada ao Projeto Banco de Dados
Apoio técnico: Raquel Quintas – Estagiária vinculada ao Projeto Banco de Dados
Primeira revisão: Stella Chagas – Cientista Social vinculada a Coordenação do ITTC
Diagramação e revisão final: Gabriela Güllich e Laura Luz – Jornalistas vinculadas à Equipe de Comunicação do ITTC