BOLETIM #16: GEOGRAFIA DA CRIMINALIZAÇÃO: UMA ANÁLISE DOS LOCAIS DE PRISÃO DAS MULHERES MIGRANTES EM CONFLITO COM A LEI

O ITTC atua em defesa dos direitos das mulheres migrantes em conflito com a lei há 25 anos. Entre as ações promovidas pelo instituto, realizou-se o atendimento de mais de 1500 mulheres migrantes privadas de liberdade no estado de São Paulo. Como resultado dessa ampla atuação ao longo dos anos, foi possível consolidar um Banco de Dados que reúne as informações obtidas através dos atendimentos prestados pela instituição. A fim de divulgar e debater as informações coletadas, a equipe do Banco de Dados, a partir de 2019, passou a publicar boletins temáticos visando discutir, de forma mais detalhada, questões que tangem à vida das mulheres migrantes em conflito com a lei. 

Para a 16ª edição dos nossos boletins, analisaremos algumas consequências relacionadas ao local da prisão das mulheres migrantes em conflito com a lei a partir de dados primários de atendimentos realizados entre os anos de 2008 a 2019, com o objetivo de investigar de que modo variáveis geográficas se correlacionam com dinâmicas específicas de criminalização e violência. 


Nota metodológica: O Projeto Estrangeiras, hoje Projeto Mulheres Migrantes, atua há mais de quinze anos com mulheres migrantes em conflito com a lei, aplicando questionários de forma sistematizada. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionário com 1.493 mulheres. Este questionário foi idealizado como um instrumento de atendimento que pudesse auxiliar a escuta e a qualidade do encaminhamento das demandas das mulheres em situação de prisão. Por este motivo, muitas questões não foram respondidas, seja devido ao fato de que a mulher não conseguiu ou não quis responder, seja devido à dinâmica dos fluxos de atendimento. Nesse sentido, para fins de análise, contabilizamos apenas as respostas disponíveis para cada questão. Dito isso, os dados cujas bases estão destacadas em vermelho devem ser considerados com cautela, pois não possuem casos suficientes para análise estatística (menos de trinta respostas). Além disso, as bases menores de quinze serão representadas em número absoluto.

Durante muito tempo, a geografia e o espaço foram pensados a partir de dimensões estritamente físicas. Hoje, após um crescimento exponencial da população global e após uma série de situações de deslocamentos populacionais forçados, o espaço ocupado por um corpo ganha crescente notoriedade nos debates públicos. Nas últimas décadas, corpo, espaço e território se coadunam em intersecções cada vez mais políticas e carregadas de simbologias, uma vez que os espaços políticos hegemônicos, sejam estes concretos ou abstratos, são bastante regulados e disciplinados por diversos mecanismos e, inclusive, são constituídos através da reafirmação de determinados corpos em detrimentos de outros – neste último caso, corpos vistos e constituídos enquanto perigosos, disruptivos, pobres, afeminados, deficientes e subalternos¹. 

Quando nos referimos a uma geografia da criminalização, queremos afirmar tanto que o espaço pode ser descrito através dos processos de criminalização, quanto que a criminalização pode ser descrita através do ponto de vista do espaço não-neutro e, portanto, político. 

O próprio corpo das mulheres “mulas” do tráfico de drogas torna-se um espaço de regulação exógena, visto que estes são utilizados pelo poder do tráfico e seus agenciadores como um meio de transporte, no sentido mais objetificador. O corpo torna-se um espaço a ser explorado de acordo com as relações de poder tecidas nos territórios e no cenário internacional. Este corpo, já previamente excluído da esfera pública hegemônica pela sua condição de vulnerabilidade e pobreza, após o processo de criminalização, torna-se um corpo perigoso. 

A fim de refletir sobre estes e outros elementos da complexa relação entre corpo, espaço e território, interseccionamos o local da prisão e o continente de residência das mulheres atendidas com algumas variáveis referentes ao contexto da prisão, quais sejam: violência institucional, responsável pela prisão, acusação formulada e tráfico de pessoas

Quando observamos as informações do nosso Banco de Dados, percebe-se que a maior parte das mulheres migrantes atendidas foram presas em aeroportos, sobretudo no Aeroporto de Guarulhos (62%), em seguida, aparecem as mulheres presas na rua (8%) e as mulheres presas em rodoviárias (6%), principalmente na Rodoviária da Barra Funda, e rodovias (6%). Prisões em hotéis e em residências também são mencionadas. Após o flagrante, a grande maioria das mulheres foi encaminhada para a delegacia. Chama-se atenção para o fato de que cerca de uma em cada dez mulheres foram encaminhadas para o hospital, sendo que 82% estavam transportando a droga no estômago.

Título do gráfico: Local da prisão e pós-prisão. Conteúdo: 62% presas em aeroportos, 8% presas na rua, 6% em rodoviárias, 6% em rodovias, 4% em hotel, 4% em residência. Dados correspondentes a um total de 1516 mulheres privadas de liberdade com informações disponíveis. O encaminhamento após flagrante se deu em 90% para a delegacia, 6% para o hospital, 3% para penitenciária e 1% outros locais. Dados correspondentes a um total de 1370 mulheres privadas de liberdade com informações disponíveis. Período analisado: 2008 a 2019.

As mulheres com residência na América do Sul e no continente africano são as que mais utilizam aeroportos, 45% e 29% respectivamente. As migrantes da América do Sul recorrem com mais frequência a rodoviárias (50%), em comparação às demais. Além disso, a proporção de mulheres migrantes residentes em países da América do Sul que costumam carregar drogas no estômago é maior do que a das demais mulheres migrantes atendidas².

Título do gráfico: Local da prisão. Em relação às mulheres presas no aeroporto, 45% eram da América do Sul, 29% da África, 16% da Europa e 10% da Ásia. Com relação aquelas presas em rodoviárias, 50% eram da América do Sul, 32% da África, 13% na Europa e 5% Ásia. Dados correspondentes a um total de 880 mulheres privadas de liberdade com informações disponíveis. Período analisado: 2008 a 2019.

No que se refere aos relatos de violência institucional, conforme podemos observar no gráfico abaixo, as mulheres presas na rua são as mais suscetíveis ao cenário de violência, cerca de cinco em cada dez a expressaram. As mulheres migrantes presas em rodoviárias, por outro lado, são as que menos relataram ter sofrido algum tipo de violência (19%), seguidas das mulheres migrantes presas em aeroportos (24%). 

Título do gráfico: Sofreu violência institucional. Sim: Aeroporto (24%), Rodoviária (19%), Rua (47%), Rodovia (26%), Hotel (33%), Residência (33%) e outros (39%). A quantidade de mulheres em número absoluto está referenciada abaixo de cada coluna. Período analisado: 2008 a 2019.

O contexto de violência institucional está diretamente ligado à polícia responsável pela prisão. Conforme aponta o gráfico a seguir, as mulheres presas na rua são as mais abordadas pela Polícia Militar (39%), principalmente as mulheres provenientes de países do continente africano (45%). As mulheres presas em rodoviárias geralmente são abordadas pela Polícia Civil (71%). Já a Polícia Federal atua, sobretudo, em aeroportos (97%). 

Título do gráfico: Responsável pela prisão. Polícia Federal: Aeroporto (97%), Rodoviária (24%), Rua (7%), Rodovia (68%), Hotel (32%), Residência (45%) e outros (25%). Polícia Militar: Aeroporto ( – ), Rodoviária (5%), Rua (39%), Rodovia (21%), Hotel (6%), Residência (15%) e outros (34%). Polícia Civil: Aeroporto (3%), Rodoviária (71%), Rua (54%), Rodovia (11%), Hotel (62%), Residência (40%) e outros (41%). A quantidade de mulheres em número absoluto está referenciada abaixo de cada coluna. Período analisado: 2008 a 2019.

Em relação ao tráfico de pessoas, as mulheres presas em aeroportos são as que mais se identificam enquanto vítimas (30%), seguidas das mulheres presas em rodoviárias (21%). Contudo, há que se atentar para a incidência de treinamentos referentes ao trabalho de identificação, acolhimento e encaminhamento de vítimas de tráfico de pessoas endereçados não apenas aos agentes federais – mais presentes em aeroportos – , mas também para outras polícias. A Polícia Civil, por exemplo, é a principal responsável pela prisão das mulheres acusadas de tráfico de drogas nas rodoviárias e cerca de duas em cada dez migrantes presas neste local afirmam terem sido vítimas de tráfico de pessoas. Observa-se, além disso, uma proporção elevada de mulheres presas em hotéis (três de dez) que  relataram situação de tráfico de pessoas. No entanto, devido ao tamanho da base (menor do que 15), não é possível comparar este dado com os demais. 

Título do gráfico: Vítima de tráfico de pessoas. Sim: Aeroporto (30%), Rodoviária (21%), Rua (10%), Rodovia (11%),Residência (5%) e outros (4%). Três de dez mulheres relatam situação de tráfico de pessoas em Hotel. A quantidade de mulheres em número absoluto está referenciada abaixo de cada coluna. Asterisco: base insuficiente para análise estatística. Período analisado: 2008 a 2019.

A acusação de tráfico internacional de drogas recai, principalmente, sobre as mulheres migrantes presas em aeroportos, seguida das mulheres presas em rodovias. Enquanto isso, as mulheres presas em rodoviárias, sobretudo latino-americanas, são acusadas mais frequentemente com a tipologia de tráfico de drogas, sem o agravamento internacional. As migrantes presas na rua, como visto, sobretudo provenientes de países africanos, são mais frequentemente acusadas de roubo ou furto. Tanto em hotéis, quanto em residências, a principal justificativa para a prisão é a acusação de tráfico de drogas. A categoria “outros” do gráfico a seguir agrupa as prisões realizadas no interior de São Paulo, em estabelecimentos comerciais, em transporte terrestre, bem como agrupa a categoria “outros” pré-estabelecida no questionário. As mulheres presas nestes outros locais são regularmente acusadas de furto. Isto se deve ao fato de que, há um elevado percentual de migrantes acusadas deste delito em prisões realizadas em estabelecimentos comerciais. 

Como sabemos, o tipo de acusação pode conferir tempos de pena diferentes. Nesse sentido, o local da prisão integra uma das materialidades para constituir a acusação. Ou seja: apenas o fato de estarem ou em um aeroporto ou em uma rodoviária pode mudar profundamente as características das consequências. Sabendo que a grande maioria das mulheres “mulas” não participam do processo de escolha dos locais pelos quais transportarão a droga, e estes locais são determinados por uma série de questões exógenas à vida dessas mulheres, tais como configurações sociopolíticas de fronteiras, proximidade geográfica do país de origem e do país de destino, custo do deslocamento etc., os espaços são estabelecidos e estabelecem fortes dinâmicas de poder e dominação no âmbito da criminalização das mulheres migrantes.

Título do gráfico: Acusação Formulada. Tráfico de Drogas: Aeroporto (54%), Rodoviária (80%), Rua (41%), Rodovia (59%), Hotel (72%), Residência (69%) e outros (39%). Tráfico Internacional de Drogas: Aeroporto (42%), Rodoviária (11%), Rua (2%), Rodovia (31%), Hotel (21%), Residência (8%) e outros (6%). Associação para o tráfico: Aeroporto ( – ), Rodoviária ( – ), Rua (1%), Rodovia (1%), Hotel (2%), Residência (8%) e outros ( – ). Furto: Aeroporto (1%), Rodoviária (4%), Rua (38%), Rodovia (1%), Hotel ( – ), Residência (8%) e outros (48%). Roubo: Aeroporto ( – ), Rodoviária ( – ), Rua (14%), Rodovia ( – ), Hotel ( – ), Residência (2%) e outros (2%). Não sabe: Aeroporto (2%), Rodoviária (5%), Rua (3%), Rodovia (8%), Hotel (6%), Residência (4%) e outros (5%). A quantidade de mulheres em número absoluto está referenciada abaixo de cada coluna. Período analisado: 2008 a 2019.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O país de residência e o local da prisão impactarão o processo de criminalização como um todo, pois correlacionam-se a uma série de aspectos concretos do flagrante delito. As mulheres residentes em alguns países latino-americanos, como a Bolívia, por exemplo, tendem a utilizar mais ônibus como meio de deslocamento, em comparação às demais, devido à proximidade do país com o Brasil. Esta determinação geográfica vai implicar na i. acusação, pois a maior parte é acusada de tráfico de drogas e não de tráfico internacional de drogas; ii. no responsável pela prisão, uma vez que a Polícia Civil é a que mais aborda mulheres nas rodoviárias; iii. no local onde a droga é transportada, já que o estômago é utilizado com mais frequência pelas mulheres latino-americanas como lugar de armazenamento, iv. na forma através da qual o combate ao tráfico de pessoas será gerido, visto que a prisão é feita, sobretudo, por policiais civis e v. na frequência da violência institucional sofrida. 

Quando presas na rua, as mulheres estarão mais propensas a sofrer violência institucional, pois serão abordadas, sobretudo, pela Polícia Civil e Militar, sendo que esta última já assumiu realizar abordagens diferenciadas a depender das características socioeconômicas, territoriais e raciais das pessoas interpeladas. Vale reforçar, também, que as migrantes de nacionalidades africanas são as mais abordadas por estas polícias, o que também pode estar vinculado a um contexto de racismo. Mais da metade daquelas presas na rua são acusadas de roubo ou furto e apenas 41% de tráfico de drogas, uma das menores proporções da amostra. 

Já em relação às vítimas de tráfico de pessoas para fins de criminalidade forçada³, o aeroporto é o principal local de prisão. Apesar das mulheres latino-americanas serem maioria nos flagrantes dos aeroportos, as africanas costumam ser vítimas de tráfico de pessoas com mais frequência. Neste caso, o país de residência é mais determinante do que o local da prisão, pois o aliciamento ocorre frequentemente antes da viagem e correlaciona-se com as dinâmicas locais do país de origem. No entanto, a forma através da qual estas mulheres serão tratadas dependerá do local onde forem presas, uma vez que os responsáveis pela prisão também mudam. 

Como mencionado anteriormente, a geografia da criminalização possui um sentido duplo: o espaço marcado pela criminalização e a criminalização descrita através do espaço. Deste modo, o Aeroporto de Guarulhos, por exemplo, torna-se um local não apenas de embarque e desembarque internacional, mas, também, o local de prisão mais comum entre as mulheres migrantes em conflito com a lei. É um espaço marcado pela presença da polícia e de diversos mecanismos de controle de corpos: câmeras, scanners, detectores de metais, entre outros. É um local já marcado por um histórico de práticas delituosas específicas; que se volta para a identificação de ilegalidades e, portanto, se estrutura em vista desse processo. Em contrapartida, o local onde as mulheres embarcam e desembarcam – assim como o local aonde desembarcariam – ajudarão a definir a acusação e, deste modo, o tipo de crime, o tratamento dado às migrantes, o acolhimento às vítimas (em caso de tráfico de pessoas para fins de criminalidade forçada). 

Sendo o tráfico de drogas considerado um crime hediondo pela legislação nacional, o corpo das mulheres “mulas”, as quais têm pouco ou nenhum poder de decisão sobre a gestão do tráfico, torna-se ainda mais perigoso e é ainda mais excluído dos espaços políticos hegemônicos. Corpo, espaço e território se imbricam em uma teia de interrelações com consequências dramáticas: o território de residência ou nascimento influencia nas relações de poder e contexto socioeconômico que determinarão as características do transporte da droga e, portanto, o local da prisão. Por sua vez, o local da prisão também influenciará diversas características do processo de criminalização.

Do território ao veredito, existem diversos fatores sobre os quais muitas mulheres não têm nenhum controle: país de nascimento ou residência, meio de transporte (muitas vezes escolhido pelos aliciadores), local da prisão, entre outros. Nesse sentido, as configurações geográficas tornam-se mais um elemento do poder exercido sobre a vida das mulheres migrantes em conflito com a lei. Portanto, se o espaço pode ser tão político e incidir tão profundamente na vida das mulheres, este também deve ser um elemento a ser pautado, disputado e transformado no que diz respeito à luta por direitos humanos. 

 

Notas:

*Base insuficiente para análise estatística

¹ BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018

² Os demais continentes foram retirados da amostra pois as bases eram muito pequenas.

³ O Boletim 5 do Banco de Dados, a partir de Diretiva da União Europeia, aponta a existência de uma “criminalidade forçada” que se exerce coercitivamente sobre grupos minoritários e vulneráveis socioeconomicamente, tendo como principais acusações os crimes contra a propriedade e os crimes de produção e tráfico de drogas.

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O boletim do ‘Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados do ITTC em colaboração com a Coordenação e a nossa equipe de comunicação. Você também pode receber os Boletins em primeira mão na sua caixa de entrada. Inscreva-se aqui.

Organização: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC

Autoria e análise: Phirtia Silva – Pesquisadora vinculada ao Projeto Banco de Dados

Apoio técnico: Raquel Quintas – Estagiária vinculada ao Projeto Banco de Dados

Primeira revisão: Stella Chagas – Cientista Social vinculada a Coordenação do ITTC

Diagramação e revisão: Gabriela Güllich e Laura Luz – Jornalistas vinculadas à Equipe de Comunicação do ITTC

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