BOLETIM #15: HUMANITÁRIO OU PENAL? REFLEXÕES SOBRE A LIMITAÇÃO DO DIREITO AO REFÚGIO ÀS MULHERES MIGRANTES EM CONFLITO COM A LEI

O ITTC atua em defesa dos direitos das mulheres migrantes em conflito com a lei há 25 anos. Entre as ações promovidas pelo Instituto, realizou-se o atendimento de mais de 1500 mulheres migrantes privadas de liberdade no estado de São Paulo. Como resultado dessa ampla atuação ao longo dos anos, foi possível consolidar um Banco de Dados que reúne as informações obtidas através dos atendimentos prestados pela Instituição. A fim de divulgar e debater as informações coletadas, a equipe do Banco de Dados, a partir de 2019, passou a publicar boletins temáticos visando discutir, de forma mais detalhada, questões que tangem à vida das mulheres migrantes em conflito com a lei. 

Para a 15ª edição dos nossos boletins, analisaremos as limitações do direito ao refúgio em relação às mulheres atendidas pelo ITTC. O faremos a partir da análise de dados secundários de cinco países com maiores proporções de solicitações de refúgio, bem como a partir de dados primários de perfil das mulheres migrantes destes respectivos países. 


Nota metodológica: O Projeto Estrangeiras, hoje Projeto Mulheres Migrantes, atua há mais de quinze anos com mulheres migrantes em conflito com a lei, aplicando questionários de forma sistematizada. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionários com 1.493 mulheres.  Entretanto, os dados utilizados a seguir versarão sobre determinados países da amostra no período de 2011 a 2019, visto que este é o recorte mais aproximado dos dados secundários coletados. Dito isso, os dados cujas bases estão destacadas em vermelho devem ser considerados com cautela, pois não possuem casos suficientes para análise estatística (menos de 30 respostas). Além disso, as bases menores de 15 serão representadas em número absoluto. 

No Brasil, a categoria jurídico-política refúgio foi incorporada através da lei 9.474/97, conhecida como Lei do Refúgio. A legislação prevê que uma pessoa refugiada é aquela “que tenha sofrido perda da proteção de seu Estado, e que tenha um fundado temor de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opinião política, ou grave e generalizada violação dos direitos humanos”. Com um aumento de 2.868% nas solicitações de refúgio entre 2010 e 2015, o tema ganha outra dimensão em termos de debate público no Brasil. Apesar do aumento expressivo no número de solicitações, os deferimentos não acompanharam o fluxo, seja devido à celeridade do processo (algumas análises chegam a durar uma década), seja devido às interpretações restritivas em torno da concessão do direito¹ (caso do judoca congolês Nkanza, por exemplo, cuja narrativa de solicitação não expressou a história monolítica esperada²). De qualquer modo, sabe-se que também há uma parcela de migrantes que realizam a solicitação de refúgio como uma forma de garantir direitos sociais básicos em território local, uma vez que o protocolo de solicitação é uma forma de regularização migratória. Como muitas mulheres atendidas pelo ITTC não conseguem todos os documentos necessários para solicitar a autorização de residência para imigrantes em liberdade provisória ou cumprimento de pena, a solicitação de refúgio torna-se uma via única de regularização, mesmo que temporária.

No que diz respeito às mulheres migrantes em conflito com a lei, a possibilidade do direito ao refúgio era desregulamentada até a vigência da Resolução CNJ 405/2021, de modo que a situação de conflito com a lei e o direito ao refúgio eram, na prática, mutuamente excludentes. Nesse sentido, a partir da prisão em flagrante, o processo legal tomava, de maneira mais comumente, o caminho da expulsão, mesmo quando esta mulher era uma pessoa em situação de refúgio, ou seja, mesmo quando, apesar de não ter concretizado a solicitação de refúgio oficial, encontrava-se em uma conjuntura circunstancial e prática de pessoa refugiada. 

No Brasil, a Lei do Refúgio entende a expulsão de pessoas refugiadas enquanto um grave atentado aos direitos humanos, uma vez que este retorno ao país de origem pode significar risco à vida. Deste modo, até mesmo a solicitação de refúgio protege a solicitante de um processo de expulsão. Contudo, no que tange às mulheres em conflito com a lei, estas fronteiras são frequentemente borradas, seja pela limitação da legislação, seja pela dificuldade, também de fundo moral, de reconhecer uma pessoa refugiada em uma mulher em conflito com a lei. 

Além disso, a lei 9.474/97 veda o direito ao refúgio às pessoas envolvidas com o tráfico de drogas, ao equipará-lo, no inciso do artigo, a crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra humanidade, crimes hediondos e participação em atentado terrorista. Sabe-se que a grande maioria das mulheres atendidas pelo ITTC são presas como “mulas” do tráfico de drogas: um crime não-violento através do qual executam funções subalternas na hierarquia do tráfico. Além de um crime não-violento, há toda dimensão da vulnerabilidade na qual se encontram estas mulheres e a possibilidade de serem vítimas de tráfico de pessoas, conforme já apontamos em outros boletins. Mais uma vez, percebe-se a profunda moralização do processo, visto que a situação de extrema vulnerabilidade destas mulheres, bem como o contexto de execução de um crime não-violento (de pouco ou nenhum impacto no tráfico de grande escala), são comparados à situação e ao contexto que envolvem  um crime de guerra ou práticas terroristas. Nesse sentido, a vedação do direito ao refúgio às mulheres “mulas” do tráfico de drogas demonstra, na prática, os limites da compaixão humanitária.

Para elucidar este processo em termos quantitativos, analisaremos o contexto de alguns países da nossa amostra. Tendo em vista os dados da plataforma Refúgio em Números, há um fluxo constante de solicitações de refúgio e deferimentos em países específicos. Nesse sentido, os países mais frequentes, tanto na amostra da plataforma, quanto no nosso Banco de Dados, são República Democrática do Congo, Nigéria, Venezuela, Angola e Colômbia. 

Em primeiro lugar, importa saber que a República Democrática do Congo vive esporádicas ondas de agitação causadas por múltiplos conflitos étnicos e políticos desde o fim da guerra civil, em 2003. Além dos diversos problemas sociopolíticos, há um histórico de sistemática violação de direitos humanos, ocasionando um duradouro fluxo de centenas de milhares de pessoas solicitantes de refúgio em todo o mundo. 

Segundo os dados coletados pelo ITTC durante os atendimentos às mulheres congolesas nas unidades prisionais, observamos que cerca de sete em cada dez foram presas na primeira viagem ao Brasil e a maior parte possui ensino médio completo – em comparação às demais escolaridades. Além disso, a grande maioria é de mães e 64% são as únicas responsáveis pelo domicílio. É interessante mencionar que existe uma alta proporção de mulheres com ensino superior, seja completo ou incompleto, e a maioria professa alguma religião cristã. Há, também, a presença de quatro grupos étnicos com os quais sete mulheres se autoidentificaram.

 

 

A partir de dados do Sincre (Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros) e do Sismigra (Sistema de Registro Nacional Migratório), organizados pelo Observatório das Migrações³ em São Paulo, entre os anos de 2011 e 2020, 715 mulheres congolesas migraram para o Brasil. Neste mesmo período, de acordo com o Relatório Anual 2021 do Observatório das Migrações Internacionais, 612 mulheres congolesas solicitaram refúgio e 405 obtiveram o reconhecimento do status de refugiadas. Estimando-se a proporção de mulheres migrantes solicitantes de refúgio a partir do montante de mulheres migrantes em geral, temos que, neste período, aproximadamente oito em cada dez mulheres migrantes congolesas eram solicitantes do status. 

Não é possível afirmar, com precisão, em qual recorte temporal todas as 405 mulheres refugiadas solicitaram o status. Como mencionado anteriormente, devido a demora no processo de reconhecimento, algumas mulheres com deferimentos entre 2011 e 2020 podem ter solicitado refúgio muito antes deste período. No entanto, devido à amplitude do recorte temporal (dez anos), é possível afirmar que boa parte das referidas mulheres devem ter solicitado refúgio e obtido reconhecimento no decorrer da mesma década. Nesse sentido, para fins didáticos e de análise, consideramos que a proporção de mulheres refugiadas em relação ao montante de mulheres migrantes é de, aproximadamente, seis em cada dez mulheres congolesas. 

Entre 2011 e 2019⁴, o ITTC atendeu 18 mulheres congolesas em situação de prisão. Se levarmos em conta a estimativa mencionada anteriormente, aproximadamente 15 mulheres seriam solicitantes de refúgio e, destas, 11 seriam refugiadas aos olhos dos agentes estatais. Se considerarmos algumas informações do perfil, tais como o pertencimento a grupo étnico, esta relação ganha ainda mais consistência. 

Já na Nigéria, o cenário de profunda insegurança se instaurou após a insurgência do grupo extremista islâmico Boko Haram, em meados de 2014. Até hoje, o grupo engendra uma série de ataques contra mulheres, realiza recrutamento forçado, utiliza atentados suicidas como arma, entre outras violências e violações dos direitos humanos. Todo este cenário de vulnerabilidade é ainda mais acentuado com o contexto de pobreza socioeconômica local. 

Entre os anos de 2011 e 2020, 855 mulheres nigerianas migraram para o Brasil. Neste mesmo período, 364 solicitaram refúgio, mas apenas 16 obtiveram o reconhecimento do status. Mais uma vez, estimando-se a proporção de mulheres migrantes refugiadas a partir do montante de mulheres migrantes em geral, temos que aproximadamente 2% das migrantes nigerianas são refugiadas, aos olhos dos agentes oficiais. De qualquer modo, atentando-se para todas as complexidades da gestão das vidas migrantes em situação de deslocamento forçado (tais como redirecionar as solicitações de refúgio para autorizações de residência ou vistos humanitários), do total de migrantes nigerianas no período, 43% eram solicitantes de refúgio. 

O ITTC contatou, entre 2011 e 2019, 22 mulheres nigerianas em situação de prisão. Se considerarmos os dados mencionados anteriormente, aproximadamente nove mulheres atendidas seriam solicitantes de refúgio. Do total de mulheres atendidas, 74% estavam em sua primeira viagem ao Brasil e uma maior proporção tinha escolaridade média (37%), embora 21% possuíssem ensino superior completo. A grande maioria das mulheres nigerianas eram mães, cristãs e quase todas eram as únicas responsáveis pelo domicílio. Há a presença de 17 mulheres pertencentes a grupos étnicos, principalmente Igbo.

 

 

No que diz respeito a Angola, o fluxo de deslocamento e refúgio desta população, no Brasil, data desde a década de 1990, devido a um duradouro período de guerras e conflitos. Com uma nova fase de paz e estabilidade, os números de solicitações de refúgio são cada vez menores. Contudo, ainda há um elevado índice de solicitações, tanto devido ao histórico, quanto devido às consequências de um período tão longo de instabilidade. 

Angola teve um fluxo migratório para o Brasil de 4.737 mulheres entre 2011 e 2020. Destas, 2.099 solicitaram refúgio e 37 obtiveram o reconhecimento do status. Ou seja, enquanto 44% das mulheres migrantes pleitearam o direito, apenas 1% do total de mulheres conseguiram o status de refugiadas. O ITTC atendeu 65 mulheres angolanas em situação de prisão, entre 2011 e 2019. Se atentarmos para a estimativa mencionada anteriormente, aproximadamente 29 mulheres seriam solicitantes de refúgio. A partir dos dados de perfil, sabe-se que as mulheres angolanas viajam para o Brasil com mais frequência, embora 31% estivessem na sua primeira viagem ao país. Cerca de 1/3 possuem ensino fundamental incompleto, quase todas têm filhos e a grande maioria são as únicas responsáveis pelo domicílio. Enquanto isso, há uma elevada proporção de solteiras e viúvas. 

 

 

Após a morte de Hugo Chávez e uma série de outros fatos circunstanciais, tais como a desvalorização internacional do petróleo e as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, a Venezuela entrou em um cenário complexo e profundo de crise econômica, política e humanitária, gerando um imenso contingente de deslocamento populacional e de solicitações de refúgio. 

Ainda segundo os dados do Sincre e do Sismigra, 76.409 mulheres venezuelanas migraram para o Brasil entre 2011 e 2020. De acordo com o Observatório das Migrações Internacionais, 69.143 solicitaram refúgio e 19.748 mulheres conseguiram o reconhecimento do status de refugiadas – uma proporção de 26% em relação ao total de migrantes do período.

O ITTC realizou o atendimento de 56 mulheres venezuelanas em situação de prisão, no período em questão. Ao aplicar a estimativa, aproximadamente 15 mulheres seriam refugiadas. De uma maneira geral, a grande maioria das venezuelanas estavam viajando pela primeira vez ao Brasil. Além disso, cerca de sete em cada dez são mães, a maioria era composta pelas únicas responsáveis pelo domicílio e aproximadamente sete em cada dez eram solteiras. Os dados indicam, por fim, um elevado percentual de acesso ao ensino superior.

 

 

Já na Colômbia, impõe-se, há mais de 40 anos, uma série de conflitos de grupos guerrilheiros, paramilitares e redes de tráfico de drogas contra o governo local, de modo a estabelecer um cenário constante de violações. Este cenário desencadeou, e desencadeia, o deslocamento de um contingente volumoso de pessoas em busca de abrigo nos países vizinhos. 

No período analisado (2011 a 2020), 21.948 mulheres colombianas migraram para o Brasil, 404 solicitaram refúgio e 66 obtiveram o reconhecimento do status – uma proporção de menos de 1%, enquanto as solicitações são de, aproximadamente, 2%. Entre 2011 e 2019, 82 mulheres colombianas em situação de prisão responderam ao questionário do ITTC. Considerando a estimativa baseada nos dados secundários coletados, cerca de duas mulheres atendidas seriam solicitantes de refúgio. Quanto ao perfil, observamos que a grande maioria das mulheres colombianas estavam em sua primeira viagem ao Brasil e cerca de quatro em cada dez tinham ensino médio completo, ao mesmo tempo em que 26% afirmaram ter ensino fundamental incompleto. Além disso, a grande maioria tem filho(s), era a única responsável pelo domicílio e mais da metade eram solteiras. 

 

 

Neste ponto, é importante mencionar que utilizamos exemplos de países com situações de excepcionalidade e crise apenas para ilustrar um certo tipo ideal de refugiado. Contudo, qualquer país pode gerar refúgio, até mesmo países democráticos. Existem uma série de elementos que podem causar o fundado temor de perseguição e risco iminente à vida. Certos países, por exemplo, perseguem pessoas LGBTQIA+, de modo que esta pode ser uma hipótese de proteção mesmo quando a pessoa migrante não provém de um país em guerra ou em crise. 

Dito isso, de maneira geral, os países com maior frequência de solicitações de refúgio utilizados anteriormente têm proporções de escolaridade bastante diferenciadas: alguns possuem um importante percentual de acesso ao ensino superior, enquanto outros têm uma maior proporção de escolaridade de nível fundamental ou médio. As mulheres solteiras são frequentes na amostra. Entretanto, tanto na República Democrática do Congo, quanto na Nigéria, a proporção de mulheres viúvas chama atenção, 28% e 14% respectivamente. Este último país, por outro lado, tem uma maior proporção de mulheres casadas, 32%. 

Segundo os dados analisados, as semelhanças entre estes países estão no fato de que a grande maioria das mulheres são mães, únicas responsáveis por seus domicílios e estão viajando para o Brasil pela primeira vez, com exceção, neste caso, da Angola. O cenário de vulnerabilidade está posto, mas as trajetórias nem sempre expressam similaridades, uma vez que estes países estão vivenciando situações sociais excepcionais. A Venezuela, por exemplo, tem muitas mulheres com ensino superior devido a especificidade do seu cenário de crise. A República Democrática do Congo possui um elevado percentual de viúvas, também devido às particularidades dos conflitos em seu território. 

Conforme mencionado anteriormente, dentre as possíveis mulheres em situação de refúgio atendidas pelo ITTC entre 2011 e 2019 dentro das unidades prisionais, não há nenhum registro de obtenção do direito ao reconhecimento do status, uma vez que a legislação ainda era bastante limitada no período de referência. Apenas no início do segundo semestre de 2021, a Resolução CNJ 405/2021, a qual estabelece procedimentos para o tratamento de pessoas migrantes custodiadas, acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, traz uma inovação legislativa sobre a matéria. Segundo este dispositivo, ao identificar indícios de determinadas vulnerabilidades, o(a) juiz(a) pode questionar à pessoa migrante se deseja solicitar refúgio para os devidos encaminhamentos e garantias legais. Mesmo em caso de migração irregular, a solicitação deve ser respeitada e, inclusive, se houver algum processo criminal em virtude da migração ilegal, este deverá ser suspenso devido ao contexto de refúgio. 

Nesse sentido, é importante que os(as) profissionais da justiça estejam atentos(as) às possíveis situações de conflito e tensões no país de origem ou residência da ré; às proporções de pessoas solicitantes de refúgio provenientes daquele território; ao perfil de vulnerabilidade; bem como à natureza do conflito local: no caso, por exemplo, de um conflito religioso ou étnico, interessa questionar a religião ou pertencimento étnico daquela mulher. Estes e outros aspectos devem ser levados em conta com vistas a ampliar as possibilidades de encaminhamento para os órgãos competentes, independentemente da situação de conflito com a lei. Contudo, algumas outras limitações são apontadas pelo Dr. João Chaves em entrevista concedida ao ITTC em fevereiro de 2022:

[…] Agora, com essa Resolução, a gente tem um instrumento para que esses temas entrem no questionário do juiz. Isso não vai ser fácil. Eu acho que não vai acontecer como está previsto. A tendência é que seja bem mecânico por uma razão: o juiz que faz a Audiência de Custódia tem um tempo. Ele tem um monte [de audiências] para fazer e não vai ficar perguntando para todo mundo se a pessoa quer solicitar refúgio, senão ele vai ter que ouvir história da República Democrática do Congo, vai ter que ouvir história da Nigéria, vai ter que ouvir situação de problema político, vai ter que ouvir passado da pessoa. O juiz não tem treinamento para escuta qualificada envolvendo qualquer tipo de interseccionalidade que você imaginar: raça, gênero, situação de refúgio, população LGBTQIA+. As limitações que eu vejo são essas. Dificilmente alguém vai conseguir solicitar refúgio [nas Audiências de Custódia], porque é um processo complexo. Mas, de repente, se a pessoa fala a palavra mágica “quero solicitar refúgio”, ”sofro perseguição” etc., pode haver. Eu acho que essa é uma estratégia que deveria ser adotada pelos Defensores que trabalham nisso: de pedir o requerimento, dizer “juiz, encaminha essa pessoa para a solicitação”, ou seja, determine que a polícia agende uma data para ir lá. Eu estou apostando muito nisso. […] É um instrumento. Não vai resolver o problema, mas é um instrumento de batalha que a gente vai ter que construir

Além do encaminhamento e orientação para a solicitação de refúgio, há que se pautar o próprio pano de fundo político-moral dos deferimentos e indeferimentos no reconhecimento do status. Atualmente, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão colegiado responsável pelo deferimento ou indeferimento das solicitações de refúgio no Brasil. O Comitê é constituído pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério da Economia, pela Polícia Federal e por uma representação da Sociedade Civil. Na prática, no entanto, o poder da sociedade civil dentro do colegiado é, sobretudo, de convencimento e defesa. Além disso, a instituição com maior poder decisório é o Ministério da Justiça e Segurança Pública que, por sua vez, adota uma postura interpretativa literal da legislação vigente. Devido ao grande volume de solicitações de refúgio, o Comitê vem privilegiando, nos últimos anos, as autorizações de residência em detrimento das solicitações de refúgio. Nesse sentido, refúgio, proteção e regularização migratória vêm sendo, paulatinamente, confundidos, de modo que surge um movimento de gestão do acúmulo de solicitações sem uma necessária garantia do acesso a direitos. É nesse contexto que o CONARE acaba por aplicar automaticamente a cláusula de exclusão referente às acusadas de tráfico de drogas, sem realizar uma análise contextual, nem exame de proporcionalidade, ou seja, sem verificar se o risco da pessoa em retornar ao país é maior do que o dano causado em território nacional. De um modo geral, há uma resistência ao deferimento do refúgio para pessoas em conflito com a lei e uma percepção, entre as instituições que gerem o status, de que este é solicitado apenas para impedir a extradição ou a expulsão. 

Portanto, mesmo em um cenário no qual mais mulheres em conflito com a lei consigam solicitar o direito, amparadas em inovações legais como a Resolução CNJ 405/2021, ainda assim haverá a barreira referente às interpretações restritivas em torno da concessão do direito, conforme comenta o Dr. João Chaves: 

A gente tem vários inimigos nesse caso e vários temas que precisam ser enfrentados. Com relação ao primeiro: a ‘contaminação’ do refúgio. O refúgio, por uma questão até política de afirmação das organizações humanitárias, e do ACNUR [Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados], principalmente, é colocado quase que de forma imaculada. Ainda se investe muito na distinção entre refugiados e apenas migrantes, ou migrantes econômicos – que já tem tanta produção sobre isso -, na ideia de que o refugiado tem direitos a mais do que a pessoa migrante. Então, essas organizações investem muito nisso e eu acho que as situações que a gente vê cada vez mais aparecendo de pessoas em conflito com a lei mostram que a situação de refúgio é, muitas vezes, mais ambígua do que parece. Primeiro mais ambígua, porque o refúgio clássico não esgota o instituto do refúgio. A gente tem a adoção, no Brasil, da Declaração de Cartagena, que está prevista em lei e que reconhece a grave e generalizada violação de direitos humanos no país de origem como fundamento. Então, em tese, a pessoa pode ser considerada como refugiada. Cada vez mais, a crise econômica gera situação de refúgio, então, dificilmente você vai dizer o que é uma migração econômica e o que é uma situação de refúgio. É o caso da Venezuela, por exemplo. É  muito ambíguo. Então, essa zona cinzenta do refúgio é cada vez mais evidente. E uma coisa que não é falada é que cometer crimes é uma forma de sair do país e, muitas vezes, o cometimento do tráfico de drogas, apesar de ser por uma via abusiva, violenta, baseada em coação, de todas as alegações possíveis de ordem econômica, psicossocial etc., ela faz parte do plano migratório e ela compõe o plano migratório. Pode ser um plano forçado, um plano coagido, um plano não voluntário, mas ela compõe esse plano e é praticamente impossível que organizações que trabalham com refúgio reconheçam isso: [reconheçam] que a pessoa, muitas vezes, comete crime de tráfico para fugir do país por absoluta necessidade de vida. Eu acho que isso desemboca também em outro ponto que… esse eu nem vou falar tanto, porque vocês já sabem. O ITTC tem produção técnica sobre isso  – muito qualificada -, que é essa questão entre mula do tráfico de drogas e vítima de tráfico de pessoas. Isso não é encarado ainda pelo judiciário como deveria, só o ITTC levanta essa bandeira hoje nas organizações de migração. Como eu disse, ninguém quer mexer muito com isso. Só o ITTC mexe. E a gente tem muita dificuldade de levantar essa bandeira, de levantar essa tese nos processos individuais. Então, da mesma forma como isso acontece para as vítimas de tráfico de pessoas, isso vai acontecer também para as pessoas que solicitam refúgio. Cada vez mais a gente vai ter que lidar com essa suspeita de que a solicitação de refúgio está sendo usada como estratégia autodefensiva, então, vai aparecer e eu acho que não é uma restrição legal. Como eu disse, qualquer pessoa pode solicitar refúgio. Se o cometimento do crime de tráfico de drogas no Brasil vai ser ou não uma causa de não reconhecimento, porque é caso de perda ou exclusão, a gente não tem como saber, mas vai demorar e a pessoa tem direito a jogar esse jogo, a solicitar.”

A partir da experiência de atuação prática da DPU, percebe-se o tamanho da complexidade e inter-relações que o direito ao refúgio pode constituir no que se refere às mulheres migrantes em conflito com a lei: 

Eu dou até um exemplo. Eu não sei o quanto o ITTC ainda tem memória sobre essa mulher. Ela é uma mulher filipina que veio para o Brasil, foi presa em Guarulhos por tráfico, foi condenada, cumpriu pena, estava em livramento condicional e aí estava com processo de expulsão e quis solicitar refúgio. Por quê? O cometimento de crime de tráfico de drogas no exterior é uma causa de perseguição no eventual retorno às Filipinas por conta do Governo Duterte, que tem quase uma política institucional de extermínio. As Filipinas dependem muito das mulheres para mandar dinheiro, então, qualquer mulher filipina que comete tráfico de drogas é uma ameaça à boa imagem das Filipinas. É uma marca da imigração filipina, que é estimulada pelo governo. Ela [a mulher em questão] solicitou refúgio e o refúgio foi indeferido com o fundamento de que [o tráfico de drogas] é uma causa de exclusão. E qual o nosso fundamento? Ao mesmo tempo em que o tráfico de drogas é uma causa de exclusão, ele é o fundamento da perseguição, e,  nessa condenação, deve prevalecer a proteção internacional.”

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme já apontado por boletins anteriores, a guerra às drogas no Brasil é permeada por um pano de fundo profundamente moral. Nesse sentido, a  prisão em flagrante das mulheres atendidas é capaz de ofuscar vulnerabilidades, trajetórias, violências e até mesmo direitos, como no caso do direito ao refúgio e à solicitação de refúgio.  

Após a implementação da Resolução CNJ 405/2021, em relação à qual o ITTC pôde contribuir ativamente, resta-nos monitorar a aplicabilidade do dispositivo. Certamente que a incorporação de uma cultura jurídico-administrativa é paulatina, principalmente quando diz respeito a uma certa sensibilidade e conhecimento geopolítico para identificar trajetórias específicas, bem como a um processo de desconstrução da moralidade hegemônica. Contudo, após mais de uma década de ineficiência para proteção dos direitos das mulheres refugiadas em conflito com a lei, a celeridade da incorporação do dispositivo faz-se profundamente urgente. 

Por último, mas não menos importante, a mudança de percepção em relação às mulheres que exercem a função de “mulas” do tráfico de drogas é central, posto que, além de serem frequentemente comparadas a traficantes de grande escala, receberem penas elevadas e em regime fechado, outras consequências tornam-se bastante violadoras, tais como a vedação do direito ao refúgio e o processo de expulsão, mesmo quando em situação de refúgio. Portanto, assim como a situação de conflito com a lei não deve limitar a compaixão humanitária, a situação de tráfico de drogas não deveria essencializar a trajetória e o contexto de vida das mulheres em conflito com a lei. 

 

Notas:

*Base insuficiente para análise estatística

¹ Da Silva, Phirtia R.R. Notas etnográficas sobre a gestão humanitária do refúgio negro na cidade de São Paulo. Revista de @ntropologia da UFSCar, 13 (1), jan./jun. 2021 (Acesse aqui)

² Waldely, Aryadne Bittencourt; Das Virgens, Bárbara Gonçalves; De Almeida, Carla Miranda Jordão. Refúgio e Realidade: desafios da definição ampliada de refúgio à luz das solicitações no Brasil (Acesse aqui)

³ Os dados são baseados nos registros administrativos da Polícia Federal relativos a todos os migrantes que solicitaram Registro Nacional Migratório (RNM) ou Registro Nacional do Estrangeiro (RNE), o que significa que esta base de dados refere-se aos migrantes regularizados ou em processo de regularização. 

O ITTC realizou atendimento a mulheres migrantes em situação de prisão até o ano de 2019. Nesse sentido, não é possível considerar o mesmo recorte temporal dos dados secundários: 2011 a 2020. No entanto, 2020 foi um ano bastante atípico também para os fluxos migratórios devido à situação pandêmica. O montante de mulheres migrantes e, por sua vez, solicitantes de refúgio diminuiu consideravelmente, reduzindo sobremaneira o impacto deste ano no recorte temporal estabelecido. Deste modo, fomos capazes de aplicar a mesma estimativa dos dados secundários nos dados primários. 

________________________________________________________________

O boletim Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados do ITTC em colaboração com a Coordenação e a nossa equipe de Comunicação. Você também pode receber os Boletins em primeira mão na sua caixa de entrada. Inscreva-se aqui.

Organização: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC

Autoria e análise: Phirtia Silva – Pesquisadora vinculada ao Projeto Banco de Dados

Apoio técnico: Raquel Quintas – Estagiária vinculada ao Projeto Banco de Dados

Primeira revisão: Stella Chagas – Cientista Social vinculada a Coordenação do ITTC

Diagramação e revisão: Gabriela Güllich e Laura Luz – Jornalistas vinculadas à equipe de Comunicação do ITTC

Entrevistado especial: Dr. João Chaves – Defensor Público na Defensoria Pública da União

Compartilhe

Posts relacionados