Ecos da diáspora Xavante de 1966 na crise atual do coronavírus

Foto: Israel Waligora/Divulgação

No último dia 10 de julho, o cacique Xavante Domingos Mahoro, de 60 anos, morreu em Cuiabá (Mato Grosso) após duas paradas cardíacas relacionadas à infecção de covid-19. Mahoro era líder da etnia Xavante na terra indígena Sangradouro, situada a quase 500km de distância da capital mato-grossense, no município de General Carneiro. No meio desse percurso, Mahoro foi internado em um hospital particular onde passou três dias aguardando por um leito de UTI. A falta de agilidade de sua transferência para a unidade de tratamento intensivo foi apontada como provável responsável pelo agravamento do quadro clínico e o consequente óbito do cacique.

A morte de Mahoro não se encerra em si mesma: longe de ser um caso isolado, é mais um foco de fumaça, que acusa a presença do coronavírus entre os povos indígenas do Brasil. Hoje, o que caracteriza espacialmente o avanço da pandemia no país é a interiorização – os municípios do interior já respondem por mais de 60% dos casos. São nesses municípios, geralmente mal equipados e mal integrados às metrópoles regionais mais próximas, que se encontram os Territórios Indígenas (TI) demarcados. A escassez de testes, instalações de pronto atendimento e unidades de remoção dentro das comunidades indígenas são carências que dificultam o tratamento de doentes e, sobretudo, são descrições de uma situação generalizada de desassistência, da qual o cacique Xavante Mahoro e 408 outros indígenas, de distintos povos, foram vítimas fatais, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abip) 

Dentre as etnias indígenas, os povos Xavante têm sido um dos mais afetados. Estimativa do final de junho apontava para mais de 100 contaminações e pelo menos 9 mortes. Os/as indígenas desta etnia se espalham em 9 grandes territórios e 14 municípios pelo estado do Mato Grosso, contabilizando cerca de 22.000 habitantes. O que ocorre é que muitas das aldeias estão expostas ao contato com a população de fora, assumida na figura de missionários, grileiros e posseiros. A vulnerabilidade à penetração do coronavírus no interior do Mato Grosso se explica, também, pela deterioração do cerrado nativo que perpassava o estado e auxiliava na proteção aos/às indígenas. Ainda sendo a ponta de lança da fronteira agrícola, mais da metade do bioma tipicamente mato-grossense foi destruído e substituído pelas plantações de soja e milho, que marcam a paisagem da região atualmente. Entravados pelos latifúndios do agronegócio, não há rota de escape para indígenas da etnia Xavante, justificando os crescentes temores de um genocídio nos territórios associados. 

Enquanto a doença marcha pelos Territórios Indígenas do Mato Grosso e em tantos outros pontos do país, a gestão de Jair Bolsonaro frente à obrigação do Estado brasileiro de proteger os povos originários se mostra uma hecatombe. No episódio mais recente, o presidente fez vetos ao PL 1142/20, que estabelece ações para combater o avanço da covid-19 entre indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e demais comunidades tradicionais. Os vetos de Bolsonaro, se sustentados, impedem que o governo federal garanta, em regime de urgência, acesso à água potável, distribuição gratuita de produtos básicos de higiene, máquinas de oxigênio e respiradores.

A extrema vulnerabilidade que marca a vida dos povos originários não remete ao início de 2019, quando o governo atual foi empossado. Ao mesmo tempo, é desta condição que podem derivar consequências nefastas da atual crise sanitária. Compreender os motivos que fazem os povos originários serem o elo mais frágil nessa nova etapa de interiorização do coronavírus passa, obrigatoriamente, por aventar ao crônico estado de esquecimento e violência que sofrem há séculos. 

Quando não usou do patrocínio, a omissão do Estado com o açoite constante dos direitos garantidos à população indígena, expostos na Constituição, tem produzido uma série de efeitos deletérios para a sustentabilidade e preservação dos TIs e das comunidades neles inseridas. Dentre as formas de agressão, os conflitos por terra, levados à cabo por interesses individuais ou empresariais, têm gerado amplas ondas de violência nas bordas dos territórios demarcados.

Um capítulo ilustrativo da ação do Estado brasileiro, em conluio com interesses privados, contra a preservação da identidade territorial e vida dos povos indígenas, ocorreu justamente no estado do Mato Grosso, em 1966. Integrantes desse mesmo povo Xavante foram forçados a sair de suas terras originárias, quando convalesceram do surto mortífero de um outro vírus, o sarampo.

O ano que nunca acabou: a diáspora Xavante de 1966

Dois anos após o golpe de 1964, os militares lançaram uma série de projetos de cunho geoestratégico, que visavam ocupar o Centro-Oeste e o Norte do Brasil, considerados vazios demográficos. Esses projetos não previam análise dos impactos ambientais gerados pelas obras, nem consideravam os deslocamentos forçados aos quais sujeitaram as comunidades tradicionais alocadas nos vastos terrenos cobiçados. Assim, aplainando o projeto de ocupação do Centro-Oeste apenas em seu componente de exploração econômica predatória, o governo de Castello Branco promoveu loteamentos e desocupações de terra no arco mato-grossense. Entre elas, estava a terra indígena Xavante (A’uwe Uptabi, na língua aquém) de Marãiwatsédé, no norte do estado.

Sem ao menos comunicar os povos originários lá residentes, os militares pousaram em Marãiwatsédé com dezenas de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para realizar uma operação de retirada de duas centenas de indígenas. O acordo para que o território Marãiwatsédé passasse para a mão de posseiros e empresas de mineração foi costurado rapidamente às escuras de um espaço público censurado. E se nos centros urbanos não se ouvia uma palavra sobre o que acontecia no norte do Mato Grosso, nas rádios locais incitava-se a ocupação dos colonos através de uma linguagem racista e anti-indigenista, como relatou a antropóloga da Funai, Iara Ferraz.

Assim, iniciou-se um processo de usurpação daquela terra, na qual grupos empresariais se sucederam em sua administração. Enquanto isso, a 400 km ao sul de Marãiwatsédé, os aviões da FAB desembarcavam as famílias indígenas em um território desconhecido administrado por missionários católicos. Quinze dias após a chegada das famílias indígenas, um surto de sarampo acometeu as mulheres e homens A’uwê Uptabi, matando 150 pessoas e compelindo as/os sobreviventes a se exilar em outros territórios indígenas próximos, relegando-os a um exílio dentro do próprio país. 

Destituídos de sua terra e de condições dignas para a afirmação de seus modos de vida, cultura e tradição, o ano de 1966 – na forma de seus traumas e violências – é um eterno contínuo não só para os povos da etnia Xavante, mas para a grande maioria dos povos indígenas do Brasil.

 

Por Jorge Fofano Júnior

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ago 4, 2020 | Noticias | 0 Comentários

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