O Brasil vinha sendo um destino procurado por milhares de pessoas, ecoando parte da magnitude dos fluxos migratórios que se estabeleceram no país entre meados do século XIX e início do século XX. Dados levantados em 2018 pelo Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais, veiculado no portal do Ministério da Justiça e Segurança Pública, apontam que, entre 2010 e 2018, mais de 700 mil imigrantes chegaram ao Brasil. A maior parte provêm de países do continente americano, como Haiti, Venezuela, Bolívia, Colômbia e Uruguai; e em menor escala, constata-se a vinda de mulheres e homens da África do Sul, Cabo Verde e Angola.
Em termos gerais, esse fluxo migratório se relaciona mais com fatores de repulsão do que atração, dado que não há incentivo formal do Estado brasileiro em atrair o novo contingente populacional, tampouco a conjuntura econômica do país tem sido favorável a esse acomodamento. O que se percebe é que para milhares de pessoas a precariedade das condições de vida em seus países de origem são tais que a mudança para uma realidade desconhecida, ainda que ofereça pouca segurança quanto ao planejamento econômico e familiar, é vista como um bom custo oportunidade.
Todavia, o ingresso pelas fronteiras brasileiras não representa o maior dos desafios para esses grupos. Procurando se estabelecer nas grandes cidades, as/os imigrantes encaram a realidade de uma economia urbana cada vez mais desigual, em termos de oportunidades e renda gerada. Nesse sentido, duas palavras-chave, que definem fenômenos recentes potencializados pelas flexibilizações trabalhistas, ajudam a entender o momento brasileiro: informalidade e uberização do trabalho (gig economy). São precisamente esses termos que adquirem tom e gravidade na rotina de milhares de haitianas/os, colombianas/os, venezuelanas/os e tantas outras nacionalidades que trabalham nos centros de comércio de metrópoles, como São Paulo ou Rio Janeiro.
Para grande parcela das famílias migrantes, a vida é ganha diariamente, ritmada no compasso do improviso, entre um dia poder montar sua barraca de comida, tecidos, roupas ou artigos eletrônicos e ter de fugir do “rapa” (fiscalização municipal) no outro. A alternativa mais “estável” fica por conta de fazer entregas em aplicativos, ressaltando que a “vantagem” de se ter sempre trabalho disponível implica jornadas extenuantes, sob o perigo constante de acidentes de trânsito e do contágio pelo vírus. Como faltam opções e o sustento de casa precisa ser adquirido, aceita-se diversos riscos e adversidades para ganhar R$7 a cada 10km percorridos. Assim, de uma maneira ou outra, as pessoas migrantes se somam aos mais de 39 milhões sem carteira assinada que hoje fazem circular uma economia subterrânea no Brasil.
Os dados que mostram a inserção quase automática desse novo fluxo migratório no mercado informal vêm de múltiplas frentes e fontes. Em novembro de 2019, no Boletim do Banco de Dados publicado sob o título ‘Gênero x Trabalho: Olhando Para As Condições Socioeconômicas de Mulheres Migrantes Em Conflito Com a Lei’, o ITTC mostrou como a informalidade ocorre no recorte das mulheres migrantes: 65% das entrevistadas trabalham sem qualquer vínculo empregatício, sendo empregadas domésticas, babás, cabeleireiras e manicures. A pesquisa ainda indica a influência do fator de gênero, ao passo que ocupações tradicionalmente associadas às mulheres têm maior chance de serem informais.
Ainda que para mulheres e homens migrantes a falta de escolaridade possa despontar como fator para a permanência na informalidade, ele não consegue explicar sozinho esse grande montante de pessoas que não dispõem de qualquer garantia trabalhista para exercer seu ofício. Há, na realidade, uma macrotendência à precarização dos postos de trabalho, mais proeminentemente observável no setor terciário, que cresce de certo modo descolada da oferta de mão de obra escolarizada. Em outras palavras, é incerto – tanto para migrantes quanto para brasileiros – que a formação escolar média, ou superior se traduza em maior absorção no mercado de trabalho atual.
A economia brasileira, portanto, está diante de um impasse: embora ciente de que a informalidade corrói a produção de riqueza nacional e a arrecadação do estado, o que será letal para a recuperação econômica após a pandemia, as decisões políticas e econômicas estabelecidas – ditas liberalizantes – se afastam da resolução do problema. Medidas mais eficazes partiriam da criação de empregos CLT e investimento em estratégias de qualificação de trabalhadoras/es migrantes e brasileiras/os; mas ao invés disso, essas decisões tomadas contribuem para aumentar a informalidade e alargar as bases de uma economia pouco integradora e eficaz.
A simbiose do mal: coronavírus e a informalidade
Considerado como o novo epicentro da pandemia de covid-19, o Brasil se aprofunda numa crise sanitária e econômica sem precedentes. Com relação ao campo econômico, apesar das consequências a longo prazo ainda serem incertas, alguns efeitos já começam a aparecer; entre eles está a acachapante queda de renda per capita das classes mais pobres, estrato do qual participa a maioria de novas pessoas migrantes. A razão desse decréscimo está atrelada às medidas de isolamento social, incompatíveis com a estrutura da economia informal que se realiza no comércio de rua e nos pequenos estabelecimentos.
Assim, produz-se uma situação em que trabalhadoras e trabalhadores se veem entre a cruz e a espada: arriscar-se a contrair o vírus na rua, com a certeza de que irá encontrar um sistema de saúde saturado, ou permanecer em casa sem ter renda. Essa realidade mostra o lado mais perverso da informalidade que assola o país, fazendo proliferar histórias como a da senegalesa que precisou viver de pão e água por três dias, pois o dinheiro do gás e da comida já havia acabado. Estima-se que mais da metade da população economicamente ativa da América Latina se encontre em situação semelhante.
Sem agir com rapidez para com os desprotegidos, o governo brasileiro não tem sido capaz de zerar as filas de espera para o auxílio emergencial, inicialmente previsto em 3 mensalidades de R$600. Pelo contrário, desde abril, multiplicam os casos de fraude, indeferimentos indevidos, lentidão de processamento dos pedidos e requerimento ilegal de documentação nacional para imigrantes. Mesmo que milhões de pessoas não tenham conseguido acessar a renda emergencial, o governo avalia reduzir as novas parcelas para R$200, segundo pressão da equipe econômica.
Ao atingir em cheio a base informal da economia brasileira, o coronavírus acelera a desigualdade entre as parcelas da população, indicando que os mais ricos tendem a sair, a curto prazo, intocados, enquanto os mais pobres – com especial atenção aos grupos de migrantes informais – terão seu poder de renda reduzidos para o nível de décadas atrás. Sem salvaguardar a base trabalhadora e injetar recursos em sua microeconomia, o Brasil sofrerá com a violenta retração do PIB, amplo processo de deflação e aumento de desempregadas/os e desalentadas/os. Nesse cenário, a recessão se transformaria em uma depressão, deixando para trás milhões de pessoas do futuro brasileiro.
Por Jorge Fofano Junior