Neste ITTC Entrevista, Luciana Boiteux fala sobre a responsabilidade do governo municipal em relação às políticas de drogas, à segurança pública e ao desencarceramento. Os assuntos debatidos com a pesquisadora vão de encontro com as propostas apresentadas na Agenda Municipal para Justiça Criminal. O material, produzido pelo ITTC, traz uma série de medidas que levam a participação do município na criação de políticas públicas e boas práticas no combate ao encarceramento.
Confira a seguir a entrevista na íntegra:
ITTC: O ITTC acompanhou a sua candidatura à co-prefeita do RJ e nos chamou muita atenção a forma como a sua campanha buscou pautar uma outra concepção de segurança pública que difere muito desse modelo de repressão e aprisionamento pela polícia e pela GCM, e demonstra a centralidade da garantia de direitos para a política de segurança pública. Então, queria entender os principais desafios de trazer para o debate político municipal esse tema.
Luciana: Bom, esse é um desafio de sair de pesquisadora, de uma pessoa que sempre falou de vários temas, e ao mesmo tempo tinha uma história e uma reflexão pública, e ser chamada para a política. De uma perspectiva da conjuntura em que isso se realizou, aproveitei para utilizar todos os meus estudos e reflexões para pensar também uma formulação política diferente. A ideia era fugir do lugar comum. Na perspectiva da segurança pública era inevitável que isso surgisse como uma outra proposta. Especialmente nós nos opusemos a políticos bastante conservadores – ao próprio Bispo (Marcelo Crivella), à lógica do PMDB, herdeiro do próprio prefeito. Ao mesmo tempo, o tema da segurança pública é sempre muito forte no Rio de Janeiro, com uma conjuntura também conservadora que trazia isso para o âmbito municipal, como o armamento da GCM. Quando éramos confrontados com esse tipo de pergunta, eu senti a necessidade de trazer uma outra leitura, especialmente essa questão do que é segurança pública. Segurança pública como uma questão de direitos e não de confronto. Porque o senso comum constrói a ideia de que o enfrentamento à criminalidade possa trazer algum resultado positivo. Então eu tentei me esforçar para desconstruir isso, partindo de uma concepção de segurança pública com garantia de direitos, acesso a direitos. A segurança pública vai muito além do que é a criminalidade, é a perspectiva de poder ir e vir na cidade como direito à cidade, ou seja, as pessoas circularem pela cidade, especialmente aquelas que mais sofrem com a violência, que, no Rio, estão nas comunidades, nas favelas.
“A segurança pública vai muito além do que é a criminalidade, é a perspectiva de poder ir e vir na cidade como direito à cidade”
ITTC: Você falou sobre a GCM. Uma das propostas da sua campanha era apoiar métodos de resolução de conflitos alternativos. Como você vê a mediação e a justiça restaurativa nesse sentido? Essas práticas podem ser uma forma de romper com a lógica punitivista?
L: Do ponto de vista teórico, como abolicionista penal e como uma pessoa que faz crítica ao sistema de justiça criminal, essa é a alternativa que eu vejo a esse modelo vertical. É a ideia de uma horizontalidade como sendo um mecanismo necessário para a solução de conflitos, para redução das tensões sociais, a partir de uma perspectiva que efetivamente pense diferente do que temos hoje. E de fato, pensar isso era uma proposta que a gente tinha, mas sentia a dificuldade de como concretizar. Nessa perspectiva, uma das propostas que a gente fez era uma articulação com universidades, que seriam parcerias do setor público com o setor público, diferente do mote das parcerias público privadas das outras campanhas. Também nesse tema, a importância de dialogar com institutos, universidades, associações de moradores, para construir o que seria esse formato.
ITTC: Propostas que dialogam com esse combate era o transporte gratuito para familiares que vão visitar seus parentes presos e também a criação de um programa municipal de emprego para pessoas egressas. Quais os desafios da administração municipal para implementar essas propostas?
L: Essas propostas surgem de uma reflexão que grande parcela da população que está na rua, muitas vezes identificada como em situação de rua ou como usuária de crack, muitas vezes são pessoas egressas do sistema penitenciário. E aí é a lógica da prevenção, de, a partir desses dados, fazer políticas públicas afirmativas que possam interferir nesse processo de intensificação da vulnerabilidade, para sair do estigma e evitar o rompimento dos laços familiares. A importância também da intersetorialidade nessa questão: não é só a busca por emprego, é também a necessidade de documento, assistência social, moradia. Essas propostas pensam em mecanismos de interferência antes da violência, antes da reincidência, que são tarefas em que o município também pode interferir. Esse é ponto caro a nós, de verificar a inserção de políticas públicas pensando efetivamente como é aquele cenário da criminalização primária, secundária e terciária, no caso, não só como políticas preventivas no sentido da educação, mas também para evitar a reincidência e para reduzir os danos do impacto miserável que é o sistema penitenciário na vida de uma pessoa.
“Grande parcela da população que está na rua, muitas vezes identificada como em situação de rua ou como usuária de crack, muitas vezes são pessoas egressas do sistema penitenciário”
ITTC: Interessante o que você comentou sobre a redução de danos do sistema. Você também falou da criminalização dos usuários de crack. Nós vemos que a guerra às drogas é um dos principais elementos que alimenta o sistema penitenciário e as violações desse sistema. Como você acha que a cidade, a partir de suas políticas, pode pensar em outros modelos que combatam a guerra às drogas?
L: Essa era a minha fala, eterna fala. Eu, que sempre tinha trabalhado com a crítica ao sistema penal e à política de drogas, estava me deparando com essa possibilidade super clara de intervir com políticas públicas no território, e a questão do município como território. Se você for pensar estado, ou mesmo na perspectiva federativa, o município está próximo daquela realidade. Então pensar em políticas nacionais para mudar a realidade, no fundo, está errado. No Brasil, a gente costuma pensar na lei nacional, a lei de drogas nacional vai mudar, e na verdade a gente tem que inverter um pouco isso, essa foi uma das propostas que a gente formulou. Quais são as janelas de oportunidade no território, na política pública feita próxima, construída com o cidadão. A questão da política de drogas foi um tema que surgiu na campanha e a gente via uma perspectiva claramente religiosa do Crivella. Ele chegou a falar, mas ainda não implementou, de uma campanha por comunidades terapêuticas, tratamentos religiosos. E a gente se opunha a isso, a nossa lógica era a lógica de políticas públicas, de serviços públicos para a prevenção e para lidar com a questão de usuários de drogas, especialmente aqueles que fazem isso na rua. Entender que a perspectiva intersetorial era necessária, tem que ter assistência, saúde, moradia, e ver que a droga, na verdade, não é a causadora do problemas, ela pode ser tanto uma válvula de escape quanto pode agravar as condições de vida daquele cidadão. Pensar isso é pensar em serviço público de saúde que chegue nesses espaços. É pensar em uma articulação, numa política pública que consiga dar conta e que fortaleça os conselhos. Hoje temos um aparelhamento dos conselhos, seja de política de drogas, seja municipal ou estadual, cada vez mais por grupos religiosos que estão pensando em uma lógica, na minha avaliação, que não pode ter dinheiro público. Dinheiro público tem que ser investido 100% em serviço público, investimento em CAPS. A questão de segurança pública é consequência, não é causa. Entender que essas políticas têm potencialidades de mudança e de redução de danos dessa realidade, também em uma perspectiva que não é da proibição, da redução de danos, de direitos humanos, que precisa ser sempre reafirmada.
“Então pensar em políticas nacionais para mudar a realidade, no fundo, está errado. No Brasil, a gente costuma pensar na lei nacional e na verdade a gente tem que inverter um pouco isso, essa foi uma das propostas que a gente formulou”
ITTC: Em relação às mulheres, no relatório MulhereSemPrisão, percebemos que muitas mulheres presas diziam estar em situação de rua. No projeto do ITTC que atua com mulheres migrantes egressas, muitas saiam da prisão e eram recusadas em casas de acolhida, nos abrigos e albergues, alegando que isso era competência do estado e não do município. Como isso acontece no Rio de Janeiro? Como combater práticas discriminatórias no âmbito municipal em relação a pessoas que em algum momento passaram pelo cárcere?
L: Eu acho que tem dois elementos: um é a criação de espaços, porque temos número insuficiente de abrigos, e quando você tem pouco espaço, acaba tendo que fazer escolhas e as pessoas responsáveis vão utilizar critérios pouco republicanos ou democráticos para isso. Mas ao mesmo tempo, entendo que tem que ter maior fiscalização desses espaços. Porque quando aumenta a demanda, não há serviço suficiente, você acaba tendo espaços que não deveriam nem existir. Aqui no Rio de Janeiro tivemos fiscalizações em locais que não atendiam os requisitos básicos para receber essas pessoas, especialmente teve um abrigo que a situação estava muito ruim. É um grande desafio hoje, como construir essa política assistencial, sabendo que há todo um regulamento federal de assistência, como conseguir colocar em prática e as atribuições municipais de articulação com o estado, muitas vezes com verbas federais. Aliás isso é outro debate, quais são os limites das políticas municipais, que muitas vezes vai depender dessa articulação com governo federal, para garantir a verba e a implementação de suas políticas. A questão de verbas públicas é uma questão importante. Com o agravamento da crise, o que no Rio de Janeiro a gente percebe é um aumento da população morando na rua. Esse é um dado que vai demandar maior atenção do município, e nosso bispo prefeito (Marcelo Crivella), fala a todo momento dos cortes orçamentários que está fazendo, esse é um grande desafio.
“Isso é outro debate, quais são os limites das políticas municipais, que muitas vezes vai depender dessa articulação com governo federal, para garantir a verba e a implementação de suas políticas”
ITTC: Nós temos pensado em olhar o cárcere como mais uma experiência de violência de gênero a que determinadas mulheres são submetidas. Então há uma importância de ampliar as políticas municipais para combater as violências que as mulheres sofrem. Como o município poderia contribuir para isso e também em relação às mulheres que saem da prisão?
L: No meio da campanha, eu me lembro que vi com meus próprios olhos o fechamento de centros de atendimento à mulher no Rio, muitos deles que eram parceria do estado com o município. Eu estava em Manguinhos, que é uma comunidade não tão distante, descendo a avenida Brasil, era uma Casa da Atendimento da Mulher e virou um espaço abandonado. Era um local para vários tipos de atendimento e a gente viu absolutamente fechado, o que a gente verificou aqui no Rio de Janeiro é a precarização desses espaços. Na minha opinião, não vou priorizar aplicação da Lei Maria da Penha só na parte punitiva, eu não vejo como isso possa dar resultados. Muito menos se obriga a mulher a ter como porta de entrada a delegacia, o que acaba afastando e não traz nenhuma proteção, muito pelo contrário, muitas vezes ela vai na delegacia e fica mais exposta, aí o marido vai bater porque foi na delegacia. Há necessidade de criação de espaços, de centros integrados. Nós temos modelos em locais de referência pelo Brasil inteiro e que precisamos massificar. Essa é uma política municipal que tem que dialogar com o estado. O que percebi no Rio de Janeiro é que dependia de uma verba do estado e federal, então esse é um limite da agenda municipal que eu percebo. Mas, eu não tenho dúvidas que trabalhar com esse tema no território também é bastante eficaz e pensando numa distribuição de competências, dividir essas responsabilidades, talvez seja uma política mais acertada. Especialmente para que espaços de acolhimento possam ter assessoria jurídica para solicitar medidas protetivas sem que tenham que passar por uma denúncia que gere processo criminal. Fora isso, em relação ao empoderamento da mulher, entra a questão da creche. Para empoderar a mulher, ela precisa de autonomia financeira e para isso é necessário assistência, de creche, educação infantil, espaços que elas possam deixar seus filhos, já que muitas vezes não tem nem marido para compartilhar. Não dá para trabalhar a perspectiva de gênero pensando em punir e responsabilizar penalmente o agressor, mas sim pensar em mecanismos de prevenção e empoderamento dessa mulher e também de assistência, especialmente, na forma de educação infantil. Em relação às mulheres privadas de liberdade, é um universo, na minha avaliação, que passamos por um momento muito importante, no qual o ITTC também teve um trabalho pioneiro. Já atingimos o objetivo importante de dar visibilidade a essa questão e relacionar o encarceramento às políticas de drogas. O que a gente precisa agora é ter possibilidade de incidência política para concretização de mecanismos que reconheçam a questão de gênero nas leis, para que possamos reduzir esse encarceramento. Na perspectiva da mulher usuária e da mulher egressa falta também programas concretos que tenham esse recorte de gênero. A Corina Giacomello, uma pesquisadora italiana radicada no México, assim como órgãos da ONU, falam que o caso de dependência e uso abusivo de drogas dessas mulheres temos que pensar em quais tipos de tratamento, atenção e serviços devem ser oferecidos, que são totalmente diferente dos oferecidos para homens. Fora isso, um tema municipal muito importante, se formos trazer o exemplo de Belo Horizonte, qual assistência é dada as chamadas Mães do Crack? Em Belo Horizonte, a assistência é a retirada dos filhos dessas mulheres. Em qualquer notícia sobre essa mulher ser usuária, a proteção do Estado dada a elas é a retirada dessas crianças para coloca-las em uma família alternativo. Isso é absolutamente autoritário e violador dos direitos humanos. Essas mulheres têm direitos e essas crianças também tem direitos de ficar com suas mães. Eu entendo que esse é um enfrentamento que precisamos fazer, não só de impedir essa prática, mas de formular mecanismos de assistência a essas mães e egressas também. Esse impacto do encarceramento de uma mulher é algo também muito duro, então inclusive assistência psicológica, questão de acesso a emprego, de readequação, apoio, essas são políticas que devem ser pensadas da perspectiva do território, tanto do município que é o ente mais próximo da realidade.
“Não dá para trabalhar a perspectiva de gênero pensando em punir e responsabilizar penalmente o agressor, mas sim pensar em mecanismos de prevenção e empoderamento dessa mulher e também de assistência, especialmente, na forma de educação infantil”
ITTC: Os municípios dizem que não têm competência no tema da justiça criminal. Qual é o desafio para concretizar essa responsabilidade do município em trabalhar com o tema das políticas desencarceradoras?
L: O grande desafio é que a visão sobre crime e justiça criminal é sempre uma visão punitiva. Constitucionalmente, essa ideia da repressão é uma competência estadual e complementar federal e nada municipal, na verdade. O maior desafio para mim é essa perspectiva da reformulação dessa concepção. Na política é difícil, pois as pessoas já têm naturalizada em seu senso comum e a mídia e imprensa não ajudam, a fazer pensar fora dessa lógica (punitiva). Na verdade, os municípios e estados têm suas responsabilidades, e nas campanhas, quando os políticos dizem que não é competência, já estão tirando o corpo fora desse tema. O conceito de segurança pública, se visto da lógica da repressão, é competência só do Estado. Se pensarmos na segurança pública como garantia de direitos e de acesso à direitos, será uma competência mais ampla, no qual cada ente tem seu papel. Então, o desafio do município é pensar em prevenção e em políticas de prevenção que possam efetivamente gerar dados e formulações efetivas e com resultado. Uma das coisas é o mapeamento dos índices de criminalidade, que praticamente não existe no Brasil. A partir desse panorama do tipo de conflito em um determinado território da cidade, você pode pensar em mecanismos de prevenção, até porque eles podem ser mais gerais ou individualizados para determinados tipos de delito. Tínhamos uma formulação interessante, conversas com pesquisadores e academia para pensar em um mapeamento da criminalidade registrada e pensar em políticas de prevenção que pudessem atuar. Onde tem maior número de estupros, aliás, aqui no rio de Janeiro começamos a mapear isso, sendo na zona oeste, nas zonas mais pobres, o que você tem que pensar? É transporte que tem horas que o ônibus deve parar fora do ponto, é iluminação, às vezes é o fortalecimento dos conselhos tutelares, políticas que possam fortalecer essa atuação preventiva.
Luciana Boiteux é advogada, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, e pesquisa gênero, encarceramento e política de drogas.