Mulheres e tráfico de drogas: uma sentença tripla – Parte II

Esta é a segunda parte de uma série de textos que visa explicar o conceito de triplo sentenciamento* no processo de encarceramento feminino, algo que o ITTC tem visto na prática em seus 18 anos de atendimento às mulheres em situação de prisão.

Ao todo, serão três partes que tratarão do tema sob diversos aspectos e, ao final, disponibilizaremos um infográfico que unifica os gráficos apresentados ao longo dos textos, reunindo diversas informações a respeito do tema.

Se ainda não leu, confira aqui a primeira parte da série

Uma boa leitura!

Raquel da Cruz Lima**

Tráfico de drogas: a sentença vem antes da acusação

Uma das razões que explicam por que o crescimento do encarceramento feminino é tão substancial em diferentes países é o caráter internacional da política proibicionista de combate às drogas. A Convenção Única de Estupefacientes das Nações Unidas, de 1961, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, e a Convenção da ONU contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, criaram um regime jurídico internacional de absoluta proibição do uso, produção e comércio de drogas.

No Brasil, a lei de drogas vigente é a lei nº 11.343 de 2006, que seguiu a lógica de endurecimento das penas para o tráfico, cuja pena mínima passou de 3 para 5 anos, sem possibilidade de conversão da pena de prisão em pena restritiva de direitos[1]. Além disso, as condutas que caracterizam o tráfico de drogas, nos termos do artigo 33, são bastante abertas e incluem condutas passivas como “ter em depósito”, “trazer consigo” e “guardar”, facilitando a atuação arbitrária da polícia.

Apesar de hoje muitos países estarem revendo o paradigma da guerra às drogas e da criminalização de usuários e pequenos traficantes, no Brasil o tema das drogas segue sob domínio da justiça criminal, que por sua vez atribui às polícias o papel de órgão gestor. O combate ao tráfico é feito majoritariamente pela lógica do flagrante, a partir da atuação da polícia nas ruas, que foca sua repressão nos bairros considerados perigosos e sobre pessoas não brancas, pobres e jovens, que não têm qualquer acesso aos mais altos níveis financeiros e de controle dos grupos criminosos.

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A caracterização de uma determinada situação como sendo de tráfico de drogas é definida exclusivamente pela polícia. Segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, em 48% dos casos analisados a droga apreendida não estava efetivamente com o acusado e foram os policiais envolvidos na prisão que estabeleceram o vínculo entre o entorpecente e a pessoa presa, sem que anteriormente à prisão houvesse qualquer investigação indicando esse vínculo. Na etapa processual, a condutprisoesportraficoa policial segue sem questionamentos e é adotada pela Justiça. De acordo com a mesma pesquisa do NEV, 74% das prisões por tráfico de drogas em São Paulo contaram apenas com o testemunho dos policiais que realizaram a apreensão do acusado.

A demonização às drogas e o caráter de crime hediondo que o tráfico de drogas possui faz com que o Judiciário tenha, como regra, a postura de referendar as escolhas feitas pela polícia. A adesão popular à retórica criminalizadora às drogas legitima a postura dos juízes que optam, como regra, por manter em prisão provisória a imensa maioria dos acusados de tráfico, não importando quão pouca seja a quantidade encontrada ou o impacto dessa prisão sobre crianças e outros familiares dependentes. Sob o argumento de proteger a ordem pública, os juízes cariocas optam por manter 98% das prisões em flagrante, conforme identificou uma pesquisa da Associação pela Reforma Prisional (ARP). Esse número é, inclusive, superior ao relacionado a homicídios, para o qual a manutenção da prisão ocorre em 93% dos casos. Assim, quando o crime é tráfico de drogas, a punição é dada antes mesmo do julgamento e de forma mais gravosa do que em qualquer outro crime.

Na prisão, o outro crime é ser mulher

Como tem sido exposto, a discriminação contra a mulher acusada de tráfico de drogas se faz presente ao longo de toda a sua trajetória, antes mesmo do encontro formal com o sistema de justiça. Contudo, a partir do momento em que a prisão é feita, uma série de novos fatores agravam a sua condição.

Já no flagrante, ao serem abordadas pela polícia, é fato que os relatos de violência policial física são menos frequentes do que comparado aos homens. No entanto, quando maus tratos acontecem com as mulheres, eles são quase sempre uma violência de gênero. As mulheres relatam que quando o agente que as prendeu era homem, elas apanhavam menos, mas havia muitas ofensas à sua sexualidade e ao seu corpo, inclusive com propostas de propina sexual, que consiste em relaxar a prisão em troca de favores sexuais. A violência física geralmente se apresenta aliada ao abuso sexual, como no caso de policiais masculinos que passam a mão no corpo da mulher presa.

Um caso relatado na Ouvidoria Comunitária da População em Situação de Rua exemplifica bem como a prisão em flagrante da mulher envolve violência de gênero e pode incluir o uso de palavras que reproduzem ofensas à sexualidade e ao corpo feminino. Nesse caso, uma mulher em situação de rua estava em uma loja comprando calcinhas quando foi acusada de furto. O policial que foi chamado para prendê-la revistou suas coisas, a apalpou e ridicularizou o fato de ela estar comprando calcinhas, chamando-a de gorda e debochando de sua sexualidade.

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É por essa razão que, neste momento em que o tema da audiência de custódia tem ganhado cada vez mais destaque, é preciso insistir que não é possível identificar casos de abusos ocorridos entre o flagrante e o encontro com o juiz com perguntas genéricas e indistintas para casos de homens e mulheres. A violência contra a mulher no flagrante tem um componente de gênero e os juízes e juízas devem estar atentos à dimensão psicológica e sexual desses casos para que a audiência de custódia possa de fato realizar sua vocação de prevenção e apuração de casos de tortura e de tratamentos degradantes, desumanos e cruéis.

O tema da audiência de custódia também é importante para lembrar que mulheres esperam por mais tempo do que os homens antes de ter o primeiro contato com um juiz. O fato de o projeto-piloto implantado em São Paulo não ter previsto que todas as mulheres presas em flagrante na cidade fossem levadas à audiência de custódia aprofunda a condição de desigualdade que hoje existe. A pesquisa do Tecer Justiça, realizada pelo ITTC e pela Pastoral Carcerária, concluiu que o prazo entre a prisão em flagrante e a primeira audiência de instrução, debates e julgamento – que, em geral, também consiste no primeiro encontro entre réus e defensor – é de 109 dias para homens, mas de 136 dias para mulheres.

Dentro do sistema penitenciário, as mulheres sofrem de um abandono progressivo, por conta de crenças sobre o papel apropriado das mulheres e suas responsabilidades. A transição de mulher-mãe para mulher-criminosa carrega penalização social e abandono, que são reproduzidos por juízas e juízes, familiares e também pelo corpo de funcionários e dirigentes das prisões. Nesse sentido, o relato abaixo de uma psicóloga da SAP que trabalhava inicialmente apenas com os homens presos é bastante ilustrativo:

Foram muitas as histórias que ouvi sobre as prisões de mulheres. Tal era a intensidade emocional das pessoas que me contavam essas histórias que me sentia praticamente desestimulada a trabalhar nesses lugares.

As mulheres presas eram apresentadas como verdadeiras bruxas, espectros do feminino destruidor. Mulheres que haviam abandonado a condição passiva e receptiva e tinham literalmente desafiado e se contraposto à lei dos homens.

Mães más que abandonando os filhos, à revelia, conseguiam estranhamente sobreviver à culpa. Elas são consideradas por muitos mulheres abomináveis.

Se não bastasse isso, são frequentes as informações de casos de assédio sexual por parte das mulheres homossexuais que, nas prisões, assumem um aspecto masculino estereotipado e agressivo (LOPES, 2004, p. 1).

Em relação ao acesso aos serviços básicos, as mulheres sofrem com menos oportunidades de trabalho e educação, lazer e atendimento à saúde. Em relação à educação, pesquisa realizada por entidades da sociedade civil, como a Ação Educativa, a Pastoral Carcerária e o ITTC, identificou que 87,2% das mulheres presas na Penitenciária Feminina de Sant’Ana tinham interesse em estudar à noite, mas mesmo assim tanto a administração penitenciária quanto o Judiciário se negaram a efetivar o direito à educação dessas mulheres.

O atendimento à saúde é um aspecto que evidencia a discriminação contra a mulher presa. Ainda que mais da metade das mulheres esteja em tratamento de saúde antes da prisão, o sistema penitenciário nega o acesso sistemático a médicos e medicação adequada. Os serviços básicos de atenção à saúde reprodutiva e às necessidades específicas de gênero, como exames papanicolau e mamografia, dificilmente são disponibilizados e não existe atenção médica adequada antes e depois do parto. Na verdade, o próprio parto é entendido mais como um tema de segurança do que de saúde. São inúmeras as mulheres que o vivenciam algemadas pelas mãos e pelos pés.

filhos

A maternidade é um tema de grande importância entre as mulheres presas já que, segundo a pesquisa do Tecer Justiça, mais de 81% delas tinham filhos, sendo que 14% eram mães de 5 filhos ou mais. Em relação aos homens, apenas 53% disseram ter filhos, sendo que apenas 24% dos homens moravam com eles. Já para as mulheres, esse número mais do que dobra. Mesmo assim, a situação de maternidade dificilmente é levada em consideração pelos juízes na fixação da pena ou no relaxamento da prisão em flagrante.

[1] Essa proibição foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 97.256/RS. Mesmo assim, as penas restritivas de direito continuam sendo pouco aplicadas em casos de tráfico.

* O triplo senteciamento é um conceito trabalhado pela pesquisadora Corina Giacomello.

** Raquel da Cruz Lima é coordenadora do Programa Justiça Sem Muros, do ITTC, autora e fonte de diversos artigos postados no Blog ITTC.

Fonte do relato:

LOPES, R. Prisioneiras de uma mesma história: o amor materno atrás das grades. 2004. 235p. Tese de Doutorado – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Foto em destaque: Juíza Dora Martins/Penitenciária Dacar IV

Fique atento para conferir a parte III. Próximos tópicos: 

Regras de Bangkok: uma luta necessária

Infográfico para download

Clique aqui para ler a parte I

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ago 5, 2015 | Artigos | 0 Comentários

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