“Nós sabemos muito bem que nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”¹

No dia 23 de julho, durante as ações do Julho Negro, a pesquisadora Raíssa Belintani, do Programa Justiça Sem Muros, participou da atividade “Conexão Brasil-Palestina: Prisão, Racismo e Resistência” junto à ativista e pesquisadora palestina Soraya Misleh, da Frente de Defesa pelo Povo Palestino, à cantora sulafricana Nduduzo Godensia Dlamini, e ao Milton Barbosa, do Movimento Negro Unificado (MNU) e representante da Amparar – Associação de Amigos(as) e Familiares de Presos(as).

Durante o evento, foram tratadas algumas das intersecções existentes entre o controle de populações através das prisões, os impactos das privatizações em matéria de punição, a economia da guerra e o uso de diferentes tecnologias de inteligência e armamento em regiões como as periferias brasileiras e os Territórios Palestinos Ocupados (TPO), de maneira a aproximar as realidades de controle populacional em contextos como os dos citados Brasil e Palestina.

A questão principal trazida no evento foi a de compreender como a estrutura da ocupação israelense é também uma estrutura de apartheid, privatizada e que visa o lucro, e como essa estrutura se reflete no Brasil e em outros lugares do mundo. O neoliberalismo como racionalidade de Estado busca controlar e selecionar determinadas populações com base no racismo, sexismo, colonialismo, entre outros, de forma a perpetuar, por exemplo, essa ocupação israelense na Palestina, e que também faz matar e encarcerar pessoas negras e indígenas no Brasil. Segundo Nduduzo Dlamini, protagonista da Campanha NduduzoTemVoz e egressa do sistema prisional brasileiro, “para mim, ser mulher negra, imigrante e com passagem pelo sistema judicial é difícil estar aqui hoje […] eu penso nessas mulheres que estão nas prisões e elas pensam em liberdade e quando elas saem, a liberdade não está aqui”.

Na Palestina, os mecanismos de controle, como os checkpoints² e o muro do apartheid³, estão presentes no dia-a-dia do povo. Um exemplo de sua utilização é a humilhação e repressão que grande parte dos palestinos está submetida durante as passagens pelos checkpoints para chegarem aos seus postos de trabalho nos territórios israelenses. Trajetos que levariam menos de 10 minutos podem levar horas e expõem essas pessoas a uma série de perigos, como violências na hora da revista – esta, diária – e prisões arbitrárias.

No ano de 2016, segundo dados mais recentes da ONG Addamer, 6440 pessoas foram presas na Palestina, o que corresponde a 17 prisões por dia incluindo crianças, homens, mulheres, ativistas de direitos humanos, membros de órgãos legislativos palestinos e jovens⁴. Em relação ao ano de 2018, apenas no mês de maio, 605 pessoas palestinas foram presas. Na Palestina entende-se o significado da frase “toda prisão é uma prisão política”, quando se vê jovens e crianças presas com penas de até 20 anos por atirarem pedras no exército israelense, altos números de prisões administrativas sob justificativas genéricas ligadas à segurança nacional, práticas de detenção em massa e punições coletivas.

No Brasil, os dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), relativos ao ano de 2016, indicam que entre 2000 e 2016 houve um aumento de 157% na população carcerária no país, sendo que as acusações que mais prendem homens e mulheres são referentes ao patrimônio ou atividades relacionadas a drogas, e, do total de pessoas encarceradas no Brasil, cerca de 40% está sob prisão provisória, ou seja, estão presas aguardando julgamento.

A impressão que se tem é que a vida na Palestina se desenvolve como em uma prisão a céu aberto, e que no Brasil a prisão é utilizada como uma política de Estado para o controle das populações. Desde a ocupação dos territórios palestinos por Israel em 1967, mais de 800.000 pessoas palestinas foram detidas sob ordens militares israelenses. Esse número constitui aproximadamente 20% do total de cidadãos palestinos e cerca de 40% de toda a população masculina. Em torno de 10.000 mulheres foram presas desde 1967 e 8.000 crianças foram presas desde 2000⁵.

A prisão na Palestina é uma política da ocupação israelense, tanto para desmobilizar comunidades e ações de resistência contra a ocupação, como para ampliar o capital financeiro e o lucro através de uma indústria da punição. Conforme dito por Soraya Misleh, “as mesmas armas que matam os filhos das mães aqui no Brasil, matam na Palestina – local em que essas tecnologias são testadas e anunciadas para o mundo todo, inclusive para o Brasil”. Isto porque, através do encarceramento, Israel, os EUA e também grandes corporações se beneficiam financeiramente com a ocupação de diferentes formas: fixação de valores altíssimos para fiança de jovens e crianças, longas distâncias e custos com transporte para visitar familiares em situação de prisão, privatização desses serviços, dentre outros exemplos.

No documentário The Lab (O Laboratório)⁶, dirigido pelo israelense Yotam Feldman, observa-se como o uso de armamento e tecnologias nos territórios palestinos ocupados funcionam como um laboratório de testes para Israel capitalizar “tecnologias de segurança” para o mundo todo, inclusive para o Brasil. As armas e tecnologias utilizadas pelas polícias e exércitos nas favelas do Rio de Janeiro são as mesmas armas e tecnologias utilizadas por Israel na Palestina.

Assim, sejam as prisões dos palestinos em contexto de apartheid, seja o aprisionamento por drogas no Brasil, toda prisão é uma prisão política, de forma que, como registrado pelas pessoas presentes no evento, lutar contra prisão é partir de estratégias de resistência, de trabalhos coletivos e do exercício da memória para vislumbrar um mundo sem ocupação na Palestina, sem genocídio do povo negro e indígena no Brasil e sem encarceramento em massa como política de Estado. Como disse Soraya, “a memória coletiva é uma resistência, porque, o que eles dizem que é passado e que é para ser esquecido, é nosso presente todos os dias”.

 

¹ Trecho do discurso de Nelson Mandela na África do Sul pós-apartheid, em 1997

² Os checkpoints são os postos de controle israelenses criados nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) para bloquear e controlar a passagem das pessoas entre os TPO e Israel.

³ O muro do apartheid ou da segregação, localizado majoritariamente nos territórios Palestinos ocupados, é um barreira física e ilegal construída por Israel para isolar e impedir a mobilidade das pessoas palestinas no território.

⁴ Esses dados podem ser encontrados no Relatório Anual de Violações de Direitos das Pessoas Palestinas Presas nas Prisões Israelenses da Addameer – Associação de Direitos Humanos e Apoio para pessoas presas (Prisoner Support and Human Rights Association). Disponível em <http://www.addameer.org/sites/default/files/publications/website.pdf>.

⁵ Dados da Addameer relativos ao ano de 2014.

⁶ O documentário está disponível com legendas em inglês e espanhol através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=iabky5rvsGk>

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ago 9, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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