Heidi Ann Cerneka
“A fim de por em prática o princípio de não discriminação consagrado no parágrafo 6 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos, deve-se tomar em conta as necessidades específicas das mulheres presas na aplicação das presentes Regras. A atenção a essas necessidades para alcançar uma igualdade substancial entre os sexos não deve ser considerada discriminatória” (Regra 1).
No Brasil já existe a Lei de Execução Penal, a lei que garante o direito de amamentação para a mulher presa e seu filho (Lei 11.942/2009), e a resolução do CNPCP sobre amamentação (Resolução CNPCP 3, de 15.07.2009) com considerações específicas sobre as necessidades das mulheres encarceradas. Porém, estas estão longe de garantir as condições necessárias para a mulher presa.
Em dezembro de 2010, a Assembleia Geral da ONU aprovou as regras mínimas da ONU para o tratamento da mulher presa e medidas não privativas de liberdade para as mulheres em conflito com a lei, chamadas Regras de Bangkok, em reconhecimento ao papel que o governo da Tailândia teve na construção e aprovação das regras.
Diferentemente de uma Convenção da ONU, as regras mínimas têm por objetivo estabelecer princípios e regras de uma boa organização penitenciária e das práticas relativas ao tratamento de prisioneiros. O Estado brasileiro, por ser membro da ONU, tem o “dever” de respeitar as regras, mas não pode sofrer sanção por não cumpri-las. As Regras oferecem diretrizes para o tratamento de pessoas presas.
As Regras Mínimas para o Tratamento do Preso foram estabelecidas em 1955 e aprovadas na Assembleia Geral da ONU em 1957. É evidente que em 1957, não se considerou a realidade da mulher encarcerada, muito menos qualquer necessidade específica sua realidade. As Regras de Bangkok procuram complementar as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso e as Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) considerando as necessidades específicas das mulheres – reconhecendo que é necessário um tratamento igual mas diferenciado.
As Regras de Bangkok, entre outras considerações, contemplam a realidade da mulher mãe em situação de prisão; o fato de que atualmente a grande maioria de mulheres é presa pelo envolvimento com drogas; a realidade das estrangeiras, a questão de saúde em geral e a saúde mental, e o direito de contato com sua família (seja por visita ou por telefone).
Das mães
Ana procurou a Pastoral Carcerária logo depois da prisão, desesperada porque os quatro filhos ficaram em casa quando ela foi presa um dia na rua, e dois dias depois, ela não sabia onde eles estavam e se alguém estava cuidando deles. Depois da visita, a pastoral conseguiu entrar em contato com a mãe dela, confirmar que os filhos da Ana estavam com a avó deles e estavam bem. Quando a equipe conseguiu dar retorno para Ana, a cela inteira se alegrou, pois todas compartilharam a angústia da jovem mãe.
Mais de 80% das presas é mãe,(1) e o fato de que ninguém espera ser presa acaba fazendo com que, na hora da prisão, os filhos percam o contato com suas mães e se encontrem desamparados. A segunda regra oferece a provisão para que a mulher possa definir com quem pode deixar os filhos enquanto estiver presa, e, se necessário, até ter a prisão suspensa enquanto procura resolver esta questão.
A terceira regra garante que no momento de inclusão, a informação acerca dos filhos, quantos são, com quem estão, se necessitam abrigo está incluída no prontuário da mãe. O processo de amamentação e a importância de as crianças permanecerem no presídio com suas mães durante um período de tempo ocupa destaque no documento, inclusive o momento de separação. As Regras não especificam um prazo de amamentação, mas concentram-se mais no momento da separação, deixando claro que precisa ser definido considerando o melhor interesse da criança. E quando esta separação acontece, o Estado tem a responsabilidade de auxiliar nas visitas e contato entre as crianças e suas mães (Regras 48-52, 64).
De extrema importância neste momento histórico, as regras dizem que jamais se utilizará algemas (medidas de coerção) no caso de mulheres em dores de parto, durante o parto e no período imediatamente pós-parto (Regra 24).
Das drogas
Segundo dados do Depen (junho 2011), 63% do total de delitos cometidos por mulheres está na Lei 11.343/2006, Le de Drogas, e, quanto aos homens, essa lei é apenas responsável por 22,6% (2). Esta realidade é global. O número de mulheres encarceradas tem disparado nos últimos anos, a maioria dos países atribui isso à relação com as drogas, que tem raízes no próprio uso e abuso de drogas e também às questões socioeconômicas. As regras não somente abordam a necessidade de oferecer oportunidades por tratamento dentro das unidades prisionais, mas reconhecem que este tratamento tem de considerar a possibilidade de a mulher ter sido vítima de violência em algum momento da vida, a possibilidade de gravidez e a diversidade cultural, e oferecer tratamento dentro deste contexto (Regra 15).
Da saúde e saúde mental
As Regras 6 à 18 tratam as questões de saúde e saúde mental, tomando em conta a alta taxa de mulheres presas portadoras de HIV, usuárias de drogas ilícitas, a possibilidade de elas terem sido vitimizadas em algum momento da vida, e a importância de se ter um controle da saúde dentro das unidades. As mulheres, em geral, têm uma maior taxa de uso de remédios controlados também.
Mulheres em conflito com a lei muitas vezes têm múltiplas e complexas necessidades, com altas taxas de distúrbios de saúde mental, violência doméstica, vitimização e dependência química e são três vezes mais susceptíveis à automutilação que os homens.(3)
Acesso à justiça
Quanto ao acesso à justiça, as regras reconhecem que é comum que as mulheres infratoras cometam menos crimes com violência, que apresentem um baixo potencial ofensivo e que devem ter, quando possível, acesso às alternativas à prisão. Medidas não privativas de liberdade deveriam ser a norma, e somente deve-se manter uma mulher presa quando o delito é grave ou violento ou quando a ela represente um perigo à sociedade (Regras 57-62).
Planejamento e pesquisa
Finalmente, há uma escassez total de informação sobre as regras de Bangkok e poucos estudos sobre as mulheres encarceradas. Mesmo que isso tenha melhorado nos últimos anos, ainda faltam dados concretos e sérios sobre este assunto, para garantir que políticas públicas nacionais e internacionais correspondam à realidade e às necessidades da mulher. As Regras 67-70 apontam a falta de informação desse assunto e a necessidade de fomentar investigações, estudos e divulgação sobre a realidade e das causas das mulheres em conflito com a lei.
Porque as Regras?
Porque mulheres ainda dão a luz algemadas; porque crianças ainda ficam desamparadas quando a mãe está presa; porque muitas mulheres ainda cumprem pena longe de suas famílias, sem visita e sem direito de telefonar para seus filhos; porque as mulheres ainda estão recolhidas em unidades de segurança máxima quando seu delito poderia ser respondido em liberdade ou sua pena poderia ser uma pena alternativa à prisão; e porque, muitas vezes, as mulheres ainda são tratadas como homens nos presídios, mas que por acaso precisam de absorventes.
As regras de Bangkok são boas. Agora começa o trabalho de divulgação, cobrança e estratégias para garantir que sejam respeitadas.
Heidi Ann Cerneka
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC
Coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional para a questão da mulher presa
Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas
Notas:
1-Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP). Censo Penitenciário do Estado de São Paulo, 2002. Disponível em: <www.sap.sp.gov.br/common/vinculados.html>. Acesso em: jul. 2010.
2-BRASIL. Ministério de Justiça. Departamento Penitenciária Nacional. Infopen Estatistica. Disponível em: <www.mj.gov.br/depen>. Acesso em: fev. 2012.
3-HMI Probation, NMCPSI and HMI Prisons. Equal but different?: An inspection of the use of alternatives to custody for women offenders, 2011, p. 13 & 15. Disponível em: <www.justice.gov.uk/downloads/publications/inspectoratereports/hmiprob/womens-thematic-alternatives-to-custody-2011.pdf>. Acesso em: fev. 2012.