Resenha de ‘Capharnaum’, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Capharnaum é o terceiro filme de longa-metragem da diretora libanesa Nadine Labaki. Vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2018, e indicado para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2019, o longa traça a história de Zain (Zain Al Rafeea), um menino que vive na periferia de Beirute, no Líbano, sem acesso à escola e em uma vida de privações junto a muitos outros irmãos e irmãs.

Ao descobrir que uma de suas irmãs será vendida a um homem mais velho, Zain foge até uma cidade próxima, onde encontra Rahil (Yordanos Shiferaw), uma refugiada, e seu filho Yonas (Boluwatife Treasure Bankole). Nesse momento, testemunha as dificuldades de ser uma pessoa não documentada, assim como Rahil. Paralelamente a essa jornada, acompanhamos cenas de um Tribunal, do momento em que Zain decide processar os próprios pais – defendendo que parem de ter filhos.

Longe de apresentar uma visão maniqueísta, a diretora expõe e explora causas e efeitos do contexto social e das práticas culturais que moldam essas pessoas – pai, mãe e crianças. Ela evita a individualização dos problemas e aponta para a estrutura da sociedade, verbalizando moldes em que masculinidades e feminilidades são compostos. O filme não apresenta ganhos de causas, reafirmando a intenção de provocar o debate sobre a desumanização das pessoas diante da precariedade das condições de vida. Capharnaum, traduzido no filme como “caos”, representa essa intenção.

Ao mesmo tempo, o filme também sensibiliza para uma questão fundamental: o crescente número de crianças não documentadas expostas a abusos sistemáticos, tráfico e exploração laboral ou sexual. Também vale destacar a preocupação da diretora em apresentar uma gama de aspectos vivenciados por essas pessoas e pouco discutidos, em se tratando de dificuldades tanto de pessoas refugiadas como das nacionais.

É o caso da aparição do sistema prisional se dá como um elemento comum, que seleciona determinadas pessoas e acaba se tornando um ponto de encontro entre elas. Se, no caso de Zain, sua família integra a rede de tráfico de substâncias ilícitas como um dos meios de sobrevivência, a prisão também surge para Rahil devido à falta de regularização documental.

Além de roteiro, fotografia e interpretações impecáveis, Capharnaum desponta pela história realista dos caminhos trilhados pelas personagens. Isso se deve, principalmente, ao fato de que os atores, não profissionais, vivenciaram as realidades, o que preenche o filme menos com interpretação e mais com a experiência, os sentimentos e as vozes que os participantes têm em relação a essas situações. Segundo a diretora, ainda que houvesse um roteiro prévio com cenas, havia um espaço de colaboração em que os atores traziam suas vivências pessoais para a cena. Nesse sentido, a emoção que o filme causa, no entanto, não se vale de dramas individualizados, mas sim de tragédias pessoais que participam em um cenário mais amplo de pobreza, migração, quadros familiares e órgãos institucionais.

Alguns detalhes sobre as gravações do filme corroboram com o realismo documental que nos sensibiliza sem cair em uma exploração do sofrimento. Para Labaki, a intenção foi de agarrar a realidade da forma mais verdadeira possível, sem impedir a vida de acontecer. E isso dota o filme de um tom de um testemunho integrado, que engloba todos os sons que dele fazem parte, seja de carros passando a todo o momento nas ruas, seja das desavenças das famílias vizinhas. Os âmbitos público e privado, com seus sons particulares, expõem os abusos, maus-tratos e abandono a que estão submetidas crianças na marginalidade.

Outro detalhe importante que dota ainda mais o longa do caráter realístico está na questão de que filme e vida/realidade e ficção se cruzam. Segundo a diretora, o bebê que interpreta Yonas, Treasure, é migrante não documentado e também tem os pais presos como no filme, ficando temporariamente sob cuidado da equipe até que os pais fossem libertos. Yordanos, a atriz que interpreta Rahil, também foi presa durante as gravações, no exato período em que Yonas permanece sozinho com Zain.  Atualmente, as crianças que participaram do filme receberam documentos e atualmente frequentam a escola.

Capharnaum, assim, torna-se um grande acontecimento tanto para nós, espectadores, quanto para as próprias pessoas que dele fizeram parte de alguma forma. Não é mais possível, na perspectiva de Labaki, permanecer inerte às políticas que tornam ilegais migrantes ou nacionais não-documentados.

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fev 27, 2019 | Noticias | 0 Comentários

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