por Mayra Cotta de Souza
É verdade que o tema dos presídios não está entre os mais populares no Brasil. Para quem minimamente ainda conserva resquícios de humanidade, é difícil ter de ser lembrado do fato de que, nesse momento, cerca de meio milhão de brasileiros estão trancados numa cela superlotada, compartilhada com ratos, sem alimentação decente, em precaríssimas condições de higiene e submetidos a uma cultura de controle que, para subjuga-los, lança mão das mais cruéis práticas de tortura. Quando se tem notícia, então, que essas torturas extrapolam os muros dos presídios e alcançam também toda a família do preso, o esforço para tentar ignorar essa realidade se torna ainda mais firme.
Apesar de a prisão representar um dos mais graves problemas sociais do país, ela é facilmente esquecida por uma evidente questão de classe. Há uma parcela da sociedade, situada na parte superior da pirâmide econômica, que pode ter a certeza de que jamais entrará em um presídio para cumprir pena ou para visitar algum interno. E é a mesma parcela que ocupa a política institucional e detém os mais difundidos veículos de comunicação. Para essa classe, a prisão não é, nem jamais será um problema dela, sendo possível continuar fingindo que é uma política estatal legítima e eficaz.
Os presídios, contudo, não são trágicos apenas para quem está atrás das grades. A realidade prisional abarca também centenas de milhares de mulheres que precisam viver seus principais relacionamentos afetivos através das grades. São esposas, namoradas, mães, irmãs e filhas que se esforçam para se manterem ao lado de seus queridos durante o cumprimento da pena, dispostas a se submeterem ao que for preciso para não perderem o contato com aqueles que lhes são tão caros. Mulheres que, mesmo aqui fora, não podem se revoltar contra o ataque aos seus corpos, porque elas tem alguém amado de refém lá dentro.
É no momento em que o sistema penal tem de lidar com as mulheres que as opressões de classe e de gênero se encontram, em uma terrível articulação que instrumentaliza o patriarcado para aprofundar os abusos. Há diversas formas para se evitar a passagem de drogas e armas em qualquer lugar – não é um grande mistério tecnológico a prática em aeroportos, afinal – mas por que não optar pela violação das cavidades do corpo das mulheres pobres?
Pela classe a que pertencem, os presos estão disponíveis para serem humilhados, torturados e controlados, e essas práticas opressoras acabam sendo requintadas e expandidas às mulheres que vão visita-los. Se essas mulheres são a única relação que os presos tem com a vida fora da prisão, a única dose de afeto e carinho recebida por eles dentro daqueles muros, então fica claro por que se opta por dificultar ao máximo essas trocas. E assim a revista vexatória continua sendo prática comum, apesar de os dados levantados confirmarem que a quase totalidade das drogas, armas e celulares encontrados em presídios não entrou lá por meio das visitas de familiares.
A classe social da população carcerária faz com que todas as violações que ocorrem dentro de um presídio sejam invisibilizadas. O gênero das visitas que frequentam o cárcere, por sua vez, legitima as revistas vexatórias. A mulher pobre, a esposa, filha, irmã e mãe de um preso não é humilhada e maltratada pelo Estado somente porque é pobre, mas o é também porque seu corpo sempre esteve disponível para ser invadido, porque o seu corpo na verdade nunca foi seu. E ele continuará sendo rotineiramente violentado simplesmente porque é mais fácil submeter as mulheres pobres a gravíssimas violações do que disponibilizar a elas o mesmo tratamento dispensado a qualquer pessoa que viaja de avião.
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Ainda sobre a questão das revistas, assista aos vídeos de Mayra Cotta, do Cladem Brasil, sobre a situação carcerária nacional e o patriarcado existente no sistema.