O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC vem trabalhando, nos últimos 17 anos, com mulheres migrantes encarceradas. A experiência de trabalho e o contato com inúmeras organizações e coletivos que lidam com o aprisionamento permitiram ao Instituto avaliar as consequências que o cárcere exerce na vida das mulheres e suas famílias.
Este texto, inspirado na morte recente de Maria Magdalena Smit – uma das mulheres atendidas pela equipe Migrantes Egressas – tem o intuito de marcar a memória das mulheres que passaram por situação de prisão. A equipe, que acolhe mulheres egressas do sistema prisional, tem percebido como a saída do cárcere não traz um significado imediato de liberdade, mas representa a continuidade de uma série de violações de direitos e a permanência dos reflexos da prisão na vida dessas mulheres – sejam elas brasileiras ou não brasileiras.
A se notar pelo último Infopen Mulheres (abril de 2018), é exorbitante a taxa de mortalidade de mulheres encarceradas, sendo as de suicídio 20 vezes mais altas do que as da população geral, e, junto às taxas de homicídio e mortes naturais, mostram a qualidade precária do cárcere. Às consequências no âmbito da saúde, no caso das mulheres migrantes, se soma ainda um profundo desamparo na saída do presídio. Sem vínculos familiares, com maiores dificuldades de acesso a emprego, comunicação e moradia, essas mulheres ficam, muitas vezes, em situação de extrema vulnerabilidade.
Maria Magdalena, falecida em junho de 2018 por motivos de saúde, era uma mulher sul-africana, idosa, que chegou ao Brasil em 2014 e foi presa sob acusação de tráfico internacional de drogas. A equipe a conheceu logo após sua chegada à prisão e passou a acompanhá-la durante os dois anos em que esteve cumprindo pena em regime fechado e semiaberto. Em maio de 2016, ela teve deferido o direito de progressão ao regime aberto pelo poder judiciário estadual e passou a cumprir pena em meio aberto na cidade de São Paulo, onde seu corpo ainda permanece após sua morte.
Maria assinava periodicamente no fórum criminal da Barra Funda como muitas outras pessoas que circulam diariamente pela cidade, e quando vinha ao escritório do ITTC sempre nos contava sobre seu desejo de voltar para casa e reencontrar a sua família, com quem mantinha contato eventual por meio de ligações. Desde que saiu da unidade prisional, Maria aguardava a publicação de seu decreto de expulsão e a possibilidade de retornar para África do Sul a partir da efetivação dessa medida pelo governo brasileiro.
As mulheres migrantes e egressas do sistema prisional enfrentam muitas incertezas em seus processos criminais e em suas possibilidades de regularização migratória no Brasil. Embora haja a obrigatoriedade de cumprimento de pena, e a demora dos processos e a consequente permanência no Brasil faça com que algumas mulheres constituam vidas e vínculos, e criem a perspectiva de continuar no país, o desejo de muitas das mulheres que conhecemos através do trabalho do Projeto Migrantes Egressas costuma ser de voltar aos seus países. Esse era também o desejo de Maria Magdalena em vida, e, em casos como o dela, a proibição de deixar o país e retornar para suas casas faz com que a privação de liberdade siga para além da prisão.
Essa privação da liberdade é também impactada pelas dificuldades no acesso a políticas públicas de saúde, moradia e trabalho, que se ampliam frente ao marcador que os antecedentes penais trazem na vida de pessoas, sendo a nacionalidade outro fator que se soma às rotulações de ser egressa do sistema prisional. A vida de Maria Magdalena aqui no Brasil mostrou um considerável desamparo, ainda que tenha passado por diferentes casas de acolhida. Ela tinha dificuldade de lidar com os regimes disciplinares estabelecidos nas políticas municipais, fazia uso de álcool e acabou vivendo em situação de rua, resistindo diariamente na manutenção de seu idioma – ela evitava falar português, uma das formas de resguardar o desejo de voltar para o seu país.
As instituições públicas não estão necessariamente preparadas para receber mulheres egressas, sobretudo quando elas são migrantes. Ainda que existam espaços e pessoas especialmente cuidadosas nos serviços públicos municipais, a estrutura do Estado acaba não sendo capaz de dar conta das suas experiências prévias. O reconhecimento de quem elas são, quais suas origens, línguas, hábitos, dificuldades e desejos (ou não) de retorno, é essencial para a construção de políticas públicas multiculturais, efetivamente acolhedoras, capazes de impedir a marginalização dessas mulheres.
Marcar a memória de vidas de mulheres como Maria Magdalena é reconhecer, ainda, que as suas mortes estão atreladas às políticas de repressão às drogas, criminalização da pobreza e imigração. Lembrar essas mortes é, portanto, atentar para a responsabilidade do Estado no que diz respeito à garantia da vida ou da morte dessas mulheres.