“Não se chama nenhuma presa pelo nome social. O próprio sistema é transfóbico”

Transviados no cárcere: um retrato de LGBTs no sistema penitenciário foi o livro-reportagem apresentado pelos jornalistas Felipe Sakamoto e Lucas Cabral como Trabalho de Conclusão de Curso na Faculdade Cásper Líbero no final de 2018. A obra traça um retrato da população LGBT dentro das prisões paulistas, discutindo, por exemplo, a criação da ala específica para LGBTs, tópico de discordância entre especialistas e movimentos sociais, e a transferência de travestis e mulheres transexuais para as unidades femininas.

Para elaboração do livro (ainda sem data de lançamento), a dupla visitou três unidades penitenciárias em São Paulo e Minas Gerais, permanecendo cerca de 65 horas dentro das prisões. Conversaram com egressos e egressas do sistema prisional, especialistas e servidores públicos. Entre as pessoas entrevistadas estão as pesquisadoras Raissa Belintani e Roberta Canheo, do Programa Justiça Sem Muros. Além disso, o relatório #MulhereSemPrisao também serviu como base teórica para o trabalho para contextualizar aspectos relativos ao sistema prisional.

Confira um trecho do capítulo “Corpos que sofrem e amam” sobre a questão dos hormônios para pessoas transgêneros nas penitenciárias de São Paulo:

Nas unidades prisionais, porém, é difícil a entrada de hormônios. Sobretudo, quando vem da visita. “Eles são barrados na porta pelo próprio agente”, conta o agente penitenciário Carlos. Ele diz que não há nenhuma orientação do diretor sobre isso. Os próprios funcionários decidem descartar esses medicamentos.

O acesso à terapia hormonal é uma questão de saúde pública. Fernando Calderan, psiquiatra do Núcleo Trans da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), alerta que, caso uma mulher tenha passado pela cirurgia de transgenitalização e retirado os produtores de hormônios sexuais, como os testículos, é obrigatório realizar a reposição. “Isso ocorre, porque eles também são responsáveis por regular os índices de glicemia e colesterol”, afirma. A ausência da hormonioterapia, nesses casos, também pode desenvolver doenças como a osteoporose.

O diretor do Centro de Políticas Específicas da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), Charles Bordin, diz que o acesso à hormonoterapia é muito tímido nas unidades penitenciárias e aponta alguns obstáculos para implementá-la.

Primeiro, falta uma regulamentação mais sólida. Inclusive, em instâncias menores, como nos estados e municípios, já que, como afirma, “a pessoa presa acessa a rede de saúde do município”. A portaria do Ministério da Saúde não traz especificações de como isso deve ser feito. Em níveis estaduais, não há uma legislação para que isso aconteça dentro do SUS.

Segundo, a ausência de uma estrutura. A rede de saúde pública, hoje, não consegue atender toda a população transgênero. “Dentro do estado, não há profissionais suficientes. Quando levamos a demanda da SAP à Secretaria de Saúde, temos uma resposta negativa. Eles não conseguem atender toda a demanda de fora”, afirma Charles.

Uma das soluções encontradas é a capacitação dos médicos das penitenciárias, para atender a saúde da população T e oferecer esse tipo de medicamento.  Segundo Charles, não existem atualmente profissionais preparados para lidar com a questão nas unidades. “A primeira turma está marcada para o final de novembro deste ano [2018]. Pretendemos capacitar 180 profissionais entre médicos e enfermeiros”, diz Charles. A SAP, contudo, afirma que o CDP III de Pinheiros possibilita a realização da hormonoterapia, mas nenhuma reeducanda solicitou o tratamento. Quando questionada se as detentas sabem dessa possibilidade, a SAP não nos respondeu.

Stella, mulher transexual e egressa do sistema carcerário, tem uma definição interessante sobre a necessidade de hormônios para pessoas transgêneros. “É como se fosse a essência da mulher que o homem não tem. A aura começa a ficar feminina. Com o tempo, as pessoas não conseguem mais ver um homem”, afirma. Stella é alta e esguia. Ela tem cabelos compridos e avermelhados. De sorriso fácil. Os 51 anos foram responsáveis por fornecer todo o conhecimento adquirido.

Stella conta que a ausência de hormônios no cárcere é horrível, porque, segundo ela, há algumas mudanças no organismo. “As coisas começam a voltar. Percebi um aumento dos pelos”. Incluindo, em alguns casos, no rosto. O efeito é como se parte da identidade dessas mulheres se desmantelasse aos poucos.

Para Ricardo Barbosa, contudo, essas mudanças demoram. Ele é psicólogo e coordenador do Ambulatório de Saúde Integral para Transexuais e Travestis desde 2009, quando o projeto nasceu. Ele conta que a pausa forçada pode ser muito violenta para essa população: “Elas começam a se olhar no espelho e a achar que estão ficando mais masculinas. E a pessoa fica muito aflita com essa condição”.

Além dos efeitos corporais, mais fáceis de serem detectados, a interrupção dos hormônios pode ter consequências psíquicas pela perda das características conquistadas. Irritabilidade, insônia, distorção da autoimagem e problemas com a autoestima são alguns dos sintomas. “Ela pode ter problemas inclusive nas suas relações”, afirma Fernando.

Na prática, o acesso à terapia hormonal já não é fácil para quem está fora do cárcere. Tampouco para quem atravessa os portões. Stella se automedica desde os 16 anos. Ela nunca fez sequer um encaminhamento com médicos, embora Fernando e Ricardo ressaltem a importância e a necessidade dessa assistência. “Já fiz uso de Perlutan e Depo Provera. Uma vez por mês, eu tomo uma vitamina B12, que é para não sobrecarregar o fígado”, diz Stella.

O acesso mais comum à hormonização é pelo uso de anticoncepcionais, de forma clandestina. É o caso de Dandara: “Eu tomava anticoncepcional, o Ciclo 21. A visita que trazia escondido”, diz. Foi a única maneira de consegui-lo enquanto esteve presa.

Só que o uso prolongado pode trazer riscos à saúde, e a população transexual precisa da hormonoterapia ao longo da vida. “Com o uso contínuo do anticoncepcional e sem assistência médica, a paciente pode desenvolver doenças como a trombose”, afirma Fernando.

Além disso, ver o médico na prisão pode ser uma experiência traumática. A população transexual e travesti tem a identidade diariamente desrespeitada. Não utilizam o nome social. O que sobressai é o de registro. É “Paulo”, “Marcelo”; não “Amanda”, Leticia” ou “Vitória”, quando são convocadas pelos agentes penitenciários. “Não se chama nenhuma presa pelo nome social. O próprio sistema é transfóbico e machista”, afirma Carlos.

 

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jan 29, 2019 | Noticias | 0 Comentários

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