BOLETIM #14: PERFIL E CONTEXTO DE PRISÃO DE MULHERES MIGRANTES INDÍGENAS DOS POVOS GUARANI E QUÉCHUA

O ITTC atua em defesa dos direitos das mulheres migrantes em conflito com a lei há mais de 20 anos. Entre as ações promovidas pelo instituto, realizou-se o atendimento de mais de 1500 mulheres migrantes privadas de liberdade no estado de São Paulo. Como resultado dessa ampla atuação ao longo dos anos, foi possível consolidar um Banco de Dados que reúne as informações obtidas através dos atendimentos prestados pela instituição. A fim de divulgar e debater as informações coletadas, a equipe do Banco de Dados, a partir de 2019, passou a publicar boletins temáticos visando discutir, de forma mais detalhada, questões que tangem à vida das mulheres migrantes em conflito com a lei. 

Para a 14ª edição dos nossos boletins, abordaremos o perfil e o contexto da prisão das mulheres migrantes que se autoidentificaram enquanto indígenas dos povos Guarani e Quéchua, com o objetivo de promover um debate crítico acerca dos direitos das pessoas em situação de conflito com a lei e pertencentes a povos originários.


Nota metodológica: O Projeto Estrangeiras, hoje Projeto Mulheres Migrantes, atua há mais de quinze anos com mulheres migrantes em conflito com a lei, aplicando questionários de forma sistematizada. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionários com 1.493 mulheres.  Os dados utilizados a seguir, entretanto, versarão sobre o período de 2010 a 2019, devido ao fato de que foi apenas em 2010 que a pergunta relativa à identidade étnica das mulheres atendidas começou a ser aplicada. Nesse sentido, dos 1368 questionários deste período, 31 mulheres se autoidentificaram enquanto indígenas dos povos Guarani e Quéchua.

É importante mencionar que, sendo esta uma das aferições mais complexas do questionário, pode haver sub-representação das mulheres indígenas atendidas. Muitas falam idiomas tradicionalmente indígenas, mas não se autodeclararam enquanto tal. Deste modo, a amostra analisada a seguir diz respeito apenas às mulheres que expressamente se autodeclararam pertencentes aos povos indígenas Guarani e Quéchua.  

Dito isso, os dados cujas bases estão destacadas em vermelho devem ser considerados com cautela, pois não possuem casos suficientes para análise estatística (menos de trinta respostas). Além disso, as bases menores de quinze serão representadas com números absolutos.


 Após muitas reivindicações e lutas dos movimentos indígenas e indigenistas organizados, o Estado brasileiro, finalmente, adotou o pluralismo jurídico através da Constituição Federal de 1988. A partir desta, as organizações políticas e sociais dos povos indígenas conquistaram a quebra do paradigma da tutela orfanológica e integracionista, até então perpetradas pelo Estado. Desta maneira, os seus direitos originários foram reconhecidos e os membros das comunidades tradicionais passaram a ser vistos enquanto sujeitos de direitos, alcançando certa autonomia em relação à ordem hegemônica e colonizadora do Estado¹. 

Considerando que a cultura de qualquer povo não é estática, se transforma e se adapta no tempo, esse suposto pluralismo jurídico também diz respeito à gestão de conflitos pelo Estado sobre estas sociedades. Nesse contexto, as mulheres migrantes indígenas atendidas pelo ITTC têm as suas experiências de “conflito com a lei” constituídas a partir da perspectiva da estrutura jurídica hegemônica. No entanto, segundo legislações e tratados internacionais vigentes no Brasil, tais como a Resolução do nº 287/19 do CNJ, a Convenção nº 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas², estas mulheres deveriam ser julgadas dentro dos padrões e entendimentos de sua própria comunidade.

Uma das principais barreiras para a garantia dos direitos de povos originários em conflito com a lei é a falta de constatação da própria identidade indígena através da autodeclaração. Se por um lado, muitas pessoas indígenas não têm ciência de que podem acessar um conjunto de normas específicas para garantia de seus direitos especiais, por outro, os atores do sistema criminal não averiguam essa condição. Estas e outras questões propiciam um contexto de incorporação destas populações ao sistema prisional, com poucos ou nenhum dos seus direitos especiais assegurados. Quando nos referimos a mulheres migrantes e indígenas, uma série de outros complicadores são acrescentados a este cenário.

Ao observarmos o perfil das mulheres em conflito com a lei autodeclaradas Guarani e Quéchua, percebe-se que a maioria destas são provenientes da Bolívia (81%) e, as demais, do Paraguai (19%). A maior parte destas mulheres têm de 25 a 34 anos (53%), são solteiras (48%) e possuem Ensino Fundamental Incompleto (52%). Um percentual considerável nunca frequentou a escola (23%). Além disso, quase todas (92%) eram as únicas responsáveis pelo sustento de suas famílias.

 

 

Vale lembrar que a autodeclaração, conforme se extrai da Convenção 169 da OIT, expressa o abandono do viés assimilacionista, ou seja, o abandono da tentativa de assimilação dos povos indígenas à cultura ocidental. Este mecanismo foi fortalecido pela Resolução 287/19 do CNJ, a qual estabelece que, em qualquer momento do processo criminal no qual advir tal informação, os devidos procedimentos legais devem ser encaminhados. Nesses casos, o Juiz deverá registrar no processo a identidade indígena da pessoa acusada ou presa, bem como a  língua por ela falada. Além disso, poderá levar em conta os usos e costumes da comunidade indígena em questão, seus mecanismos e normas próprias de punição – os quais poderão ser compreendidos a partir de perícia antropológica, ou seja, a partir do estudo e da definição técnica de todos os aspectos culturais relevantes dentro do processo judicial. O ideal é que não se confiram penas privativas de liberdade às pessoas indígenas, devido a toda magnitude do impacto cosmológico da prisão sobre a vida destas e também de suas comunidades/povos (sendo o regime mais gravoso previsto na lei, nesse contexto, o de semiliberdade). Importante mencionar, também, que estas regras são válidas para qualquer pessoa autodeclarada indígena, mesmo quando migrantes³.

Quando nos referimos a mulheres grávidas e mães, esta recomendação é ainda mais imperativa, de modo que, em última instância, a pena seja cumprida em prisão domiciliar nas suas respectivas comunidades. Contudo, em um contexto de residência no exterior, a aplicação desta normativa é ainda mais complexa. Conforme podemos observar nos dados a seguir, aproximadamente nove em cada dez mulheres tinham filhos. Embora estas tenham, em média, um ou dois, há um elevado percentual de mulheres com mais de três filhos, aumentando ainda mais o impacto social implicado no isolamento destas em relação às suas comunidades e familiares. Além disso, 10% afirmam estar grávida e 6% ainda não têm certeza da gravidez.

 

 

Na prática, por outro lado, os dados apontam que todas as mulheres mães da amostra, com informações disponíveis, receberam penas privativas de liberdade e a maioria tiveram sentenças acima de 6 anos, na contramão das resoluções e normativas nacionais e internacionais. Nestes casos, pelo menos três figuras jurídicas criadas com o intuito de reduzir a pena e promover o desencarceramento podem não ter sido aplicadas: primeiro, o dispositivo do tráfico privilegiado (parágrafo 4º, Art. 33 da Lei 11.343/06); segundo, o reconhecimento das identidades indígenas em questão (mecanismo previsto pelo Estatuto do Índio, art. 56, caput e parágrafo único, pela Convenção 169 da OIT, art. 9 e art.10, bem como pela Resolução CNJ 287/2019) e, terceiro, o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº. 13.257/2016). Nesse sentido, mais uma vez, observamos uma sobredeterminação da prisão em flagrante em comparação a todas as outras características e circunstâncias que envolvem a prisão destas mulheres.

 

 

É central destacar que, mesmo quando submetidas a penas privativas de liberdade, as pessoas indígenas devem ter seus costumes respeitados. Portanto, a Justiça deve garantir alimentação adequada, assistência médica e religiosa específicas, visitas familiares em dias diferenciados, entre outras medidas para garantia da dignidade da pessoa indígena e manutenção cultural do indivíduo e do povo. Entretanto, em um contexto onde as comunidades de origem destas mulheres encarceradas são estrangeiras e, em grande medida, apartadas da Justiça brasileira, a conjuntura de efetivação de pleno direito torna-se ainda mais inacessível.

Além disso, como é possível observar a seguir, cerca de sete em cada dez mulheres indígenas estavam enfrentando algum problema de saúde: principalmente respiratórios e gástricos. Aparecem também problemas ginecológicos, cardíacos, dores não especificadas, bem como ferimentos e infecções. Como sabemos, muitos povos indígenas possuem medicamentos e rituais de cura específicos. Se estas mulheres não são reconhecidas enquanto indígenas durante o processo criminal, seus direitos de acesso à saúde, nos termos da sua própria cultura, são comprometidos. 

 

 

Chama-se atenção para o fato de que grande parte das mulheres indígenas presas estavam viajando pela primeira vez ao Brasil e mais da metade só souberam da vinculação da viagem ao tráfico de drogas no momento da prisão. Conforme já apontamos em boletins anteriores, boa parte das mulheres atendidas pelo ITTC encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Muitas são enganadas sobre o motivo da viagem, não têm antecedentes criminais, transportam pequenas quantidades de drogas e são presas na primeira vez que viajam para o Brasil. Todas essas características, tal como argumentam diversos estudos da área, indicam que as mulheres conhecidas como “mulas” do tráfico de drogas não participam das decisões, não fazem parte de organizações criminosas e, na prática, são utilizadas como meros instrumentos dos traficantes de grande escala. 

 

 

No contexto das mulheres indígenas, esta tese ganha ainda mais força, uma vez que, devido ao seu perfil de vulnerabilidade socioeconômica (aos olhos hegemônicos – e até etnocêntricos -, uma vez que muitas destas comunidades possuem compreensões diferentes em relação à sua conjuntura socioeconômica), elas podem se tornar alvos mais cobiçados pelos aliciadores. A falta de conhecimento e de controle sobre as circunstâncias do tráfico de drogas fica ainda mais explícita pelo montante de mulheres que não sabem nem o tipo da droga transportada, nem a quantidade (a qual, na maioria dos casos daquelas que sabem, não chega a 1kg). Mesmo com a presença de diversas circunstâncias atenuantes, como visto, essas mulheres continuam recebendo penas bastante elevadas.

 

 

A motivação da viagem está, sobretudo, vinculada à busca ou proposta de trabalho, renda e negócios (85%). Motivação afetiva e residência no Brasil também aparece. Chama-se atenção para o contexto de violência doméstica como um dos motivos da viagem, o que torna ainda mais complexa a situação dessas mulheres enquanto migrantes, indígenas e vítimas de violência. Além de tudo, 27% das indígenas Guarani e Quéchua atendidas sofreram algum tipo de violência institucional, principalmente privação de água e uso do banheiro. 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se as mulheres migrantes em situação de prisão encontram múltiplas dificuldades relacionadas a esses marcadores sociais, ser mulher, migrante e indígena em conflito com a lei certamente confere uma série de novas complexidades aos casos em questão. Entretanto, existem uma série de limitações em torno desta problemática. Em primeiro lugar, o Brasil não dispõe de dados sistemáticos sobre a situação de pessoas indígenas em conflito com a lei. Quando incorporamos a situação de pessoas migrantes e indígenas, a escassez de dados torna-se ainda mais latente. No entanto, as informações produzidas sobre estas populações são, também, uma forma de monitorar as circunstâncias de prisão, julgamento e punição, bem como possíveis violações de direitos. 

Ademais, sendo o critério da autodeclaração imperioso, no campo criminal, para a aplicação dos direitos especiais dos sujeitos pertencentes a povos originários, a falta de informações destas mulheres sobre o contexto legislativo local e internacional, bem como a complexidade das construções de identidades em diferentes países estrangeiros, tornam ainda mais difícil a autoidentificação enquanto indígenas durante a situação de prisão e o processo judicial. Em relação às autoridades competentes, muitas ainda não questionam a identidade das rés, dificultando a vinculação dos direitos específicos. Além disso, em um contexto no qual as mulheres, conforme apontado em Boletim 12, são lidas, principalmente, enquanto migrantes, suas identidades podem estar sendo ofuscadas por esse forte marcador social da diferença.

Para finalizar, por mais que a legislação nacional e internacional vigentes envolvam as pessoas indígenas não-nacionais, é importante ressaltar os desafios que deverão ser enfrentados pelo Estado para a aplicabilidade das normativas. Nesse sentido, os agentes da justiça podem encontrar dificuldades em aplicar medidas como a consulta às especificidades culturais das comunidades, a prisão domiciliar e a visita de familiares. O estudo sobre a incorporação de procedimentos específicos em caso de prisão de mulheres indígenas migrantes é urgente, de modo que sejam investigadas medidas alternativas de garantia de direitos para estas populações, principalmente medidas desencarceradoras e despenalizadoras.

 

Notas:

*Base insuficiente para análise estatística
** Representação em número absoluto
¹ Indígenas em conflito com a lei: a criminalização dos povos indígenas no Brasil através do judiciário. Caroline Dias Hilgert e Michael Mary Nolan (Acesse aqui)
² Manual para defender os direitos dos povos indígenas e tradicionais. Fundação para o Devido Processo – DPLf . Tradução atualizada e revisada por Caroline Dias Hilgert e Daniel Cerqueira (Acesse aqui)
³ Cartilha Em Quadrinhos Os Direitos Das Pessoas Indígenas Em Conflito Com A Lei (Acesse aqui)

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O boletim do ‘Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados do ITTC em colaboração com a Coordenação e a nossa equipe de comunicação. Você também pode receber os Boletins em primeira mão na sua caixa de entrada. Inscreva-se aqui.

Organização: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC

Autoria e análise: Phirtia Silva – Pesquisadora vinculada ao Projeto Banco de Dados

Apoio analítico: Caroline Hilgert – Diretora ITTC, Consultora Jurídica do ADD/IISC e Assessora Jurídica do CIMI. 

Apoio técnico: Raquel Quintas – Estagiária vinculada ao Projeto Banco de Dados

Primeira revisão: Stella Chagas – Cientista Social vinculada a Coordenação do ITTC

Diagramação e revisão: Gabriela Güllich e Laura Luz – Jornalistas vinculadas à Equipe de Comunicação do ITTC

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