Errata: No boletim enviado por email o parágrafo “A maioria dessas mulheres chega ao Brasil através de propostas de trabalho fictícias, representando 70% dos casos com elementos de tráfico de pessoas” está com o dado incorreto de 60%. Nesta versão o texto está com a correção.
Em seus quase 20 anos de atuação, o Projeto Estrangeiras atendeu mais de 1.500 mulheres migrantes em conflito com a lei na cidade de São Paulo. Deste trabalho resultou um banco de dados, que tem como objetivo preservar a memória institucional do ITTC, mas ainda, produzir conhecimento e contribuir para a efetivação de direitos dessas mulheres.
Como apresentado no primeiro boletim, muitas das mulheres atendidas pelo projeto foram presas enquanto exerciam a função de mulas do tráfico internacional de drogas. Geralmente essas mulheres recorrem à função de mulas como forma de obter ou complementar a renda para o sustento da família, visto que a maioria é responsável pelo domicílio.
Entretanto, vale ressaltar que algumas delas também se submetem à função de mulas contra a sua vontade, sendo vítimas de tráfico de pessoas. Entre as mulheres migrantes em conflito com a lei entrevistadas no período de 2008 a 2019, o ITTC constatou que pelo menos 106 se encaixam em critérios internacionais utilizados para a identificação de vítimas de tráfico de pessoas.
É importante ressaltar que esse valor não exclui a possibilidade de que mais mulheres entrevistadas no período tenham sido vítimas de tráfico de pessoas, mas nem sempre é possível identificar todos os casos, uma vez que o questionário é aplicado durante os primeiros encontros com as mulheres e elas podem não se sentir totalmente confortáveis para compartilhar suas trajetórias em detalhes.
Nota metodológica: Para identificar elementos do tráfico de pessoas nas trajetórias das mulheres atendidas, o ITTC toma como base o Protocolo de Palermo, que define tráfico de pessoas como:
(…) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração” (Palermo, 2000).
A identificação desses casos é feita através de questionários, que são aplicados sistematicamente desde 2008, passando por ajustes ao longo dos anos.
No período de 2008 a 2019 foram aplicados 1.493 questionários, e destes, 106 contêm relatos com elementos do tráfico de pessoas. Os dados abaixo se referem às 106 mulheres cuja trajetória envolve elementos de tráfico de pessoas. Entretanto, nem sempre eles totalizam 106 respostas, visto que ocasionalmente as mulheres podem não responder a algumas perguntas. Isso ocorre porque o questionário é feito em um momento de acolhimento, e as mulheres têm o direito de não responder, sem que isso comprometa o atendimento.
Elementos do tráfico de pessoas
Das 106 narrativas analisadas, 41% envolvem casos de cárcere privado e 36% alguma forma de engano, especialmente em relação a falsas propostas de trabalho. A questão da ameaça aparece em seguida, representando 27% dos casos. É importante ressaltar que as narrativas analisadas podem englobar mais de uma categoria. Os casos de assédio sexual (4%), por exemplo, apareceram em narrativas que também envolviam engano e cárcere privado.
Segundo dados da A21, organização sem fins lucrativos que combate formas de trabalho análogas à escravidão, a principal forma de recrutamento de vítimas de tráfico de pessoas é através de falsas propostas de trabalho. No entanto, também é possível se aproveitar da situação de vulnerabilidade das vítimas e com isso obter o consentimento delas. Por conta disso, a questão do consentimento pode ser considerada irrelevante a depender do contexto.
Consentimento e vulnerabilidade
Apesar dos avanços nas normativas nacionais e internacionais quanto à identificação e ao acolhimento de vítimas de tráfico de pessoas, ainda há certa resistência por parte das instituições em reconhecer nessa categoria pessoas que foram obrigadas, impelidas, assediadas a praticar alguma atividade ilícita no local de destino, como o caso das mulas.
A legislação brasileira, por exemplo, é bastante restritiva neste sentido e reconhece como vítima de tráfico de pessoas apenas aquelas cujo deslocamento teve como finalidade a remoção de órgãos, condições de trabalho análogas à escravidão, servidão, adoção ilegal ou exploração sexual. Esta concepção limitada vai na contramão de uma diretiva da União Europeia que reconhece outras formas de exploração como tráfico de pessoas, dentre elas aquelas que envolvam a prática de atividades ilícitas.
Aproximadamente 1/3 das mulheres com relatos que se enquadram no perfil de vítimas de tráfico de pessoas não sabiam da vinculação da viagem ao tráfico de drogas, enquanto 27% descobriram no momento dos preparativos ou durante a própria viagem. Nestes casos, é comum a ocorrência de ameaças, de diversas ordens, para que as mulheres prossigam com a viagem.
O fato de uma parcela das mulheres (38%) saberem desde o início sobre a vinculação da viagem ao tráfico de drogas não exclui o fato de que elas tenham trajetórias com elementos do tráfico de pessoas. Muitas destas estavam em situação de extrema vulnerabilidade e seus aliciadores fizeram uso disso, recorrendo até mesmo a ameaças aos familiares, especialmente filhos e filhas, para que elas fizessem o transporte das drogas, como é o caso de algumas mulheres que estavam devendo para agiotas. Também é comum que as mulheres queiram desistir do transporte de drogas durante a viagem, mas são mantidas em cárcere privado e/ou têm seus documentos retidos, procedimentos estes utilizados pelos aliciadores, tanto para a cobrança de uma dívida impagável, como para constranger e conter as mulheres.
O perfil das vítimas
A maioria das mulheres que se encaixam nos critérios de vítimas de tráfico de pessoas são da origem sul-africana (27%), seguidas por venezuelanas (9%) e bolivianas (9%). Apesar da escassez de dados sobre tráfico de pessoas na África do Sul, Bolívia e Venezuela, recentemente esses países têm atraído atenção da mídia e de pesquisadores quanto ao tema.
No caso da África do Sul, por exemplo, alguns estudiosos chamam atenção para o aumento do tráfico de pessoas no país. Por sua vez, a mídia brasileira destacou que a crise na Venezuela abriu brechas para o tráfico de pessoas na região. Já os casos de bolivianos(as) são mais conhecidos no Brasil, especialmente quando a finalidade do tráfico está relacionada ao trabalho análogo à escravidão.
Idade
Os dados disponíveis sobre tráfico de pessoas no mundo indicam que a maioria das vítimas são mulheres ou meninas, deslocadas principalmente para fins de exploração sexual. Apesar da carência de informações sobre a idade das vítimas, a tendência é que as vítimas para esta finalidade sejam mulheres mais jovens.
No entanto, quando se trata de tráfico de pessoas cuja finalidade da exploração é o tráfico de drogas, mulheres mais velhas também podem estar entre as vítimas. Dentre os casos identificados pelo ITTC, há mulheres das mais diversas faixas etárias, sendo 40% jovens de até 29 anos, e 47% de mulheres entre 30 a 45 anos.
Motivação e financiamento da viagem
A maioria dessas mulheres chega ao Brasil através de propostas de trabalho fictícias, representando 70% dos casos com elementos de tráfico de pessoas, seguido de formas de ameaça e coerção (10%).
Uma das dificuldades para identificar vítimas de tráfico de pessoas é que muitas não se reconhecem enquanto tais. Estes casos são ainda mais comuns quando as pessoas responsáveis ou mediadoras no deslocamento das vítimas são seus amigos ou familiares, chegando até a financiar a viagem. Por conta disso, motivações como “busca por trabalho e renda”, “proposta de turismo”, “motivação afetiva” e “visita a amigos e parentes” também podem desencadear numa situação de tráfico de pessoas.
Nos casos analisados em que constam motivações como essas, é comum que amigos ou familiares tenham apresentado as vítimas para terceiros, e estes foram responsáveis por colocar as mulheres em situação de cárcere privado, ameaças e/ou retenção de documentos.
Conforme o relatório da A21, cerca de 11% das vítimas de tráfico de pessoas identificadas pela instituição foram traficadas ou vendidas por familiares, ao passo que aproximadamente 8% foram traficadas por um amigo. Esta parece ser uma realidade para vítimas de tráfico de pessoas independente da finalidade da exploração, visto que dentre as mulheres migrantes em conflito com a lei e com elementos do tráfico de pessoas, 32% tiveram suas viagens financiadas por amigos.
A partir das narrativas analisadas pelo ITTC e os relatos de mulheres vítimas de tráfico de pessoas identificadas por outras instituições, é possível notar diversas semelhanças nas trajetórias dessas mulheres, independentemente do tipo de exploração ao qual foram submetidas, como falsas propostas de trabalho, envolvimento de amigos no deslocamento, ameaças e retenção de documentos.
No entanto, no caso de mulheres migrantes em conflito com a lei, a questão do tráfico de drogas têm um peso muito maior em suas trajetórias, e o fato de que muitas dessas mulheres podem ter sido vítimas do tráfico de pessoas é menosprezado pelas instituições do sistema de justiça e até mesmo por algumas instituições que lidam com a temática.
O aliciamento e o comércio de pessoas não podem ser tolerados, independente de qual seja a atividade de controle e uso das pessoas. Não devemos estabelecer uma hierarquia entre as formas de exploração, sendo os casos tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, trabalho forçado ou análogo à escravidão ou tráfico de drogas igualmente graves. No Brasil, há o agravante de que essas mulheres ainda são julgadas como criminosas e sua condição de vítima de tráfico de pessoas é desconsiderada.