Violação de direitos das mulheres mães e gestantes presas preventivamente 

Por Amanda Caroline Alves Pereira Rodrigues e Irene Maestro Guimarães

Em março de 2016, foi promulgada a Lei Federal nº 13.257, que objetiva, dentre outras questões, proteger a infância e o pleno exercício da maternidade de mulheres. 

Após dois anos de sua promulgação, o ITTC buscou analisar como essa lei, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, tem sido aplicada pelos atores do sistema de justiça criminal brasileiro. Para isso, elaborou-se uma pesquisa dividida em três etapas referentes a três diferentes momentos processuais que as mulheres custodiadas pelo Estado geralmente percorrem quando entram em conflito com a lei: 

1) A primeira etapa analisou a aplicação do Marco Legal durante as audiências de custódia de mulheres no Fórum Criminal da Barra Funda; 

2) A segunda etapa consiste na investigação dos casos de mulheres presas no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, a partir de uma análise dos processos selecionados através de formulários de atendimento da Defensoria Pública Estadual (DPE-SP) aplicados por defensores/as públicos em estabelecimentos prisionais voltados para a detenção provisória; 

3) A terceira e última etapa se debruça sobre decisões determinadas pelos STF e STJ, referentes a pedidos de prisão domiciliar de mulheres que entram com recursos nessas instâncias superiores.

No artigo anterior, foram apresentados os resultados da etapa 1 da pesquisa. Já o presente artigo pretende apresentar a leitura sobre alguns pontos verificados durante a etapa 2. 

Divisão de Apoio ao Atendimento do Preso Provisório (DAP) 

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo realiza atendimento jurídico gratuito em estabelecimentos prisionais voltados para a manutenção da prisão de pessoas presas preventivamente que não foram sentenciadas pelo judiciário e aguardam julgamento em Centros de Detenção Provisória, conhecidos como CDP’s. 

Em parceria com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, a DAP disponibilizou alguns dados coletados em atendimentos realizados no ano de 2018. A pesquisa buscou levantar o perfil socioeconômico dessas mulheres e avaliar as práticas dos atores judiciais no manejo do Marco Legal da Primeira Infância no curso do processo judicial. 

Através de formulários aplicados por defensores/as públicos durante entrevista com a pessoa privada de liberdade, foi possível obter informações do tipo: motivos da prisão; maternidade; emprego e renda; cor/raça; idade; violações de direitos e/ou relatos de violência; assim como, acessar os processos judiciais para poder analisar os pedidos realizados pela defesa e os fundamentos utilizados nas decisões promulgadas pelos juízes e juízas do processo de conhecimento, bem como os das audiências de custódias pelas quais, eventualmente, essas mulheres tenham passado anteriormente.. 

O Diagnóstico de aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres selecionou 200 processos de instrução e julgamento de mulheres que estavam privadas preventivamente de liberdade no CDP feminino de Franco da Rocha até o fim do ano anterior. 

Perfil comum entre a população prisional feminina

O perfil comum encontrado apresenta que a maioria das mulheres analisadas nessa amostra é negra, jovem com idade entre 18 e 29 anos e com baixa renda familiar, além disso, em sua maioria, tinham por ocupação antes da prisão preventiva profissões informais ou autônomas. 

Com relação ao tipo de delito, a maioria das mulheres foi mantida presa por crimes relacionados ao comércio de drogas (57%), seguidos de crimes patrimoniais (32,5%). 

Tais informações apenas ratificam os dados produzidos em outras pesquisas sobre o sistema prisional: há uma expressiva seletividade penal na atuação do judiciário brasileiro, denotando uma tendência a manter aprisionadas pessoas pertencentes a grupos sociais considerados vulneráveis, por se encontrarem em situação de enfrentamento a diversas desigualdades socioeconômicas e raciais reproduzidas no decorrer da história de nosso país.

A respeito da maternidade, após a coleta e sistematização de dados, identificamos 107 mulheres que teriam direito à prisão domiciliar prevista pelo Marco Legal: 92 mães de crianças com até 12 anos ou com deficiência; 4 mulheres gestantes; 8 mulheres mães e gestantes; 3 mulheres que declararam ser imprescindíveis aos cuidados de outros.

Tendo em vista que a maioria das mulheres são mães e/ou gestantes, o Marco Legal assume particular importância, na medida em que permite a aplicação de medidas desencarceradoras e, assim, proteger o exercício da maternidade e a proteção da infância, bem como minorar os efeitos nocivos que a prisão impõe sobre o círculo familiar e comunitário em que está inserida a mulher, diminuindo os impactos do aprisionamento sobre aqueles que dela dependem (como idoso/as, pessoas com deficiência, crianças, e etc.). 

Violações ao corpo da mulher e aos seus direitos

Um número expressivo de 27% das mulheres atendidas relataram ter sofrido algum tipo de violência, como, por exemplo, agressão física ou verbal e ameaça. Além disso, 7,50% delas afirmaram sofrer mais de uma forma de violência perpetrada concomitante.   

“Levou tapa na cara quando foi presa e foi xingada de vagabunda, puta e noia. Um dos policiais tentou atear fogo em seu cabelo.”
(Descrição sobre o relato de violência coletado em atendimento)

[Policiais] Disseram que iriam tomar seu filho se não confessasse.”
(Descrição sobre o relato de violência coletado em atendimento)

O policial Matraca colocou o fuzil em sua boca e a machucou. Bateram em sua cabeça, onde tinha um machucado. Falaram que se ela estivesse grávida, ia abortar.”

(Descrição sobre o relato de violência coletado em atendimento)

Policiais militares que a abordaram foram racistas com a ré, pois disseram “tinha que ser negra”.”

(Descrição sobre o relato de violência coletado em atendimento)

Além de configurarem violações a direitos – prática comum do sistema penal brasileiro observada em pesquisas sobre o tema -, essas violências sobre seus corpos, incluem, além da agressão física, a violência psicológica, sexual, o assédio, as ameaças aos filhos e filhas, a discriminação racial, entre outras, e ocorrem desde a abordagem policial até o caminho percorrido até os CDP’s ou penitenciárias, e dentro das unidades. 

Assim, a experiência da mulher com o sistema de justiça criminal é marcado por violências que mesclam a seletividade étnico-racial e de classe que perpassa todos os corpos considerados alvos privilegiados do Estado, com complexidades relacionadas ao gênero. 

O impedimento do pleno exercício da maternidade e a ausência de proteção à infância

 Um primeiro e relevante aspecto verificado pela pesquisa é que embora a maioria das mulheres da amostra tenha declarado ser mães e/ou gestantes, verificamos que somente 43,93% das 107 potenciais beneficiárias da prisão domiciliar tiveram especificamente a questão da maternidade e da domiciliar discutidas no decorrer do processo. Tais números mostram como o Marco Legal ainda não tem sido efetivamente incorporado na análise dos casos concretos, de modo a trazer à luz informações sobre a condição da mãe e de sua prole para proteger sua condição específica. 

Das 107 mulheres identificadas como mães e/ou gestantes com direito a conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, 67,3% permaneceram presas. Dentre as restantes, 18 tiveram concedida a prisão domiciliar; 16 a liberdade provisória; e 1 obteve a revogação da prisão temporária. Isto é, excluindo-se as 17 mulheres que tiveram concedida a liberdade (ou tiveram a prisão temporária revogada), restam 90 mulheres que preenchem os requisitos previstos em lei. Dessas 90 mulheres, só 18 mulheres tiveram a prisão domiciliar concedida em algum momento de seu processo judicial (até o momento da consulta eletrônica aos autos). Podemos, então,dizer que em 80% dos casos de potenciais beneficiárias o direito foi negado.

Os argumentos mobilizados para negar a prisão domiciliar possui similaridades com aqueles utilizados pelos juízes e juízas das audiências de custódia acompanhadas na primeira etapa da pesquisa. A maioria utiliza-se de critérios subjetivos em suas decisões e faz uso abusivo das exceções previstas na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no habeas corpus coletivo nº143.641, quais sejam, crimes cometidos com violência ou grave ameaça ou situações excepcionalíssimas

Em dois casos diferentes, por exemplo, os juízes fundamentam sua decisão alegando que, 

“ [a] custodiada está a cometer reiteradamente o tráfico, sem qualquer preocupação com seu filho, e a tudo indicar que sua presença é maléfica. Maternidade não pode ser salvo-conduto à criminalidade.”

“ [p]rejuízo à integridade física dos menores por serem cuidados por mãe usuária de drogas.”

Através das decisões é possível observar que há uma postura reiterada de magistrados e magistradas consistente em reforçar a punição de mulheres mães e/ou gestantes por meio de valorações subjetivas da relação da maternidade com a prática de alguns tipos de delito pelos quais a mulher está sendo acusada, principalmente quando se refere ao uso ou comércio de drogas.  Ainda, nesse sentido, utilizam-se argumentos relacionados como presença de antecedentes criminais, ou passagem pela Fundação Casa, bem como a abstrata gravidade do delito para negar o direito à prisão domiciliar, contrariando as determinações e os critérios objetivos do Marco Legal e da decisão do STF.

As especificidades de gênero, em vez de pautarem um olhar mais atencioso para a garantia de direitos, são utilizadas no sentido oposto e acabam por ser mobilizadas no intuito de reforçar a punição sobre a mulher que é mãe e/ou gestante, julgando-a moralmente ao colocá-la na condição de “mãe criminosa”. Observamos, que a criminalização de algumas condutas e a perspectiva de regular um ideal de maternidade constituem um imbricamento indissociável.

Por mais que o Marco Legal estabeleça critérios objetivos, bastando que se trate de mãe com filhos até 12 anos e/ou portadores de deficiência ou gestante para a aplicação da prisão domiciliar, o seu uso tem sido deturpado. Em vez de fortalecer o desencarceramento de mulheres, tem sido direcionado para reforçar a sua criminalização. Contudo, ainda assim, a pesquisa levantou uma minoria de atores judiciais que têm cumprido e aplicado a lei conforme a perspectiva que a ensejou. Esse assunto foi aprofundado em artigo sobre a incorporação do Marco Legal da Primeira Infância. 

 


Foto destaque: G. Dettmar/Agência CNJ

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nov 12, 2019 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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