Por Maria Clara D’Ávila*
O ITTC analisou a Lei 13.769, de 19 de dezembro de 2018, que garante a prisão domiciliar e novos critérios de progressão de pena para mulheres mães e gestantes
O Projeto de Lei 10.269/2018, de autoria da senadora Simone Tebet (PMDB/MS), foi sancionado e transformado na Lei 13.769, de 19 de dezembro de 2018. Segundo a ementa, a lei estabelece a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, além de disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação.
O ITTC comemora a aprovação da lei, pois garante a aplicação de direitos previstos nas Regras de Bangkok em um contexto de encarceramento em massa de mulheres e uso excessivo de prisões provisórias. No entanto, também ressalta que há pontos problemáticos no projeto que merecem atenção.
Assim, elaboramos uma explicação sobre as alterações que o projeto traz à legislação brasileira e os critérios para sua aplicação.
O que muda?
A possibilidade de substituição da prisão preventiva para a prisão domiciliar está prevista na legislação desde 2016, quando o Marco Legal da Primeira Infância foi aprovado, alterando o Código de Processo Penal. Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, que garante o benefício da prisão domiciliar às mulheres presas preventivamente que se enquadrarem nas hipóteses do Marco Legal.
Na prática, a decisão estabelece parâmetros de interpretação da lei, visando harmonizar as decisões judiciais e determinar sua aplicação obrigatória a partir de requisitos objetivos, devendo ser justificada a sua não aplicação.
A Lei 13.769/2018 também incorpora alguns pontos da decisão do STF e estabelece no Código de Processo Penal critérios objetivos de substituição da prisão preventiva por prisão albergue domiciliar.
Qual a importância dessa lei?
Na nova lei, não há mais a possibilidade de diferentes interpretações para as “situações excepcionalíssimas”, que acabam sendo impeditivos ao enquadramento das mulheres, mesmo quando atendiam aos requisitos objetivos, conforme evidenciado na pesquisa feita pelo ITTC sobre a aplicação do Marco Legal da Primeira Infância.
Como sei se atendo aos critérios para ter acesso ao direito?
A nova legislação se aplica em dois momentos: para mulheres que tiveram prisão preventiva decretada, isto é, que ainda não foram condenadas e estão respondendo ao processo penal; e para mulheres que já se encontram em cumprimento de pena. Os critérios para concessão do direito são os seguintes:
Quantas mulheres têm esse direito?
Não há como se ter uma estimativa precisa acerca do número de mulheres que podem ser beneficiadas com a progressão, pois o próprio poder público não possui os dados de quantas mulheres em privação de liberdade são mães ou gestantes.
Os únicos dados que existem são do Infopen, que mostram que 74% das mulheres privadas de liberdade são mães. O problema, entretanto, é que essa informação se refere a apenas 7% do total de mulheres aprisionadas em todo território nacional.
No tocante às mulheres mães e gestantes presas provisoriamente, recentemente, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN informou ao STF que havia 10.693 mulheres que seriam, em princípio, elegíveis para a concessão da prisão domiciliar, no termos do que foi decidido no habeas corpus coletivo. Entretanto, apenas 426 mulheres tiveram a prisão domiciliar concedida até então, o que equivale a cerca de 4% do total. Ainda, esse número representa 1% do total de mulheres encarceradas no Brasil, que é de 42.355, e cerca de 2,2% do total de presas provisórias no Brasil, que são 19.223.
A dificuldade em saber, ao certo, quantas mulheres se enquadram na lei retrata também a dificuldade de garantir esse direito. A nova lei traz mais uma possibilidade para sua aplicação por facilitar a identificação dessas mulheres por meio dos critérios objetivos.
Quais os pontos negativos da lei?
Ainda que as alterações promovidas da Lei de Execução Penal sejam positivas, por exemplo diminuindo a fração de tempo a ser cumprida para se alcançar a progressão de regime, elas impõem critérios que, além de serem desproporcionais, tornam a aplicação da lei inócua.
Três dos requisitos são especialmente prejudiciais: a comprovação da primariedade;a comprovação de não integração a organização criminosa, e a comprovação de bom comportamento carcerário pelo diretor ou pela diretora do estabelecimento.
O requisito da mulher ser primária, ou seja, nunca ter sido condenada na justiça antes, é um critério que não existe sequer para que pessoas condenadas a crimes hediondos possam progredir de regime. Para o ITTC, essa previsão legislativa é inconstitucional, pois significa uma dupla punição por um crime que já teve sua pena cumprida. O propósito do Marco Legal da Primeira Infância é justamente impedir que a pena se estenda até os filhos, e essa condição estende, inclusive, a pena de um crime anterior.
Sobre a produção de prova de não filiação a organização criminosa, trata-se de uma condição inexistente na legislação. Portanto, é desproporcional e discriminatório exigi-la de mulheres mães e gestantes, já que não existe qualquer tipo de documentação que ateste tal fato, ainda mais considerando o precário acesso à justiça.
Isso torna a lei inócua, além de ter potencial de criar precedentes altamente prejudiciais a mulheres selecionadas pelo sistema penal. Atualmente, 62% das mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento por crimes ligados ao tráfico de drogas, que em geral são praticados como atividade de subsistência e não por figuras integrantes de organização criminosa. Essa inovação legislativa estabelece uma presunção de culpa, privando a mulher da concessão desse e de outros direitos.
Por fim, a exigência de comprovação de bom comportamento carcerário também constitui ônus que não deve ser atribuído às próprias mulheres. O relatório feito pelo diretor ou diretora do estabelecimento já é previsto na Lei de Execução Penal para a progressão de regime. Acrescentar essa exigência permite o entendimento de que é necessária a produção de um novo relatório baseado na condição de mãe ou gestante das mulheres, aumentando as chances de negativas e arbitrariedades.
Segundo o relatório MulhereSemPrisão, a maternidade já é usada nos estabelecimentos prisionais femininos como dispositivo de controle e punição. Um exemplo que foi identificado na pesquisa é o recorrente uso de faltas disciplinares como ameaças a mulheres pelo modo como exercem o cuidado de seus filhos. Dessa forma, abre-se maior brecha para o exercício de dupla penalização às mulheres: são julgadas por infringirem a lei e por não cumprirem ideais maternos.
Outro ponto problemático é que agora, pela alteração na Lei de Execução Penal, a responsabilidade de acompanhamento da execução da pena das mulheres abarcadas pelo novo critério de progressão de regime é primeiro dos órgãos locais e, depois, do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN.
Com isso, a lei delega competência do poder judiciário a um órgão do executivo. Esse deslocamento desconsidera as alternâncias de governo e seus impactos no acompanhamento dos casos, podendo causar instabilidade e insegurança jurídica. Além disso, atribui como critérios de avaliação a reincidência e a “integração social” das mulheres que progrediram de pena, o que também gera uma competência fora da alçada do poder executivo.
Esse é mais um entendimento do ITTC como inconstitucional, pois a condição “integração social” não tem como ser monitorada nem aferida. São critérios subjetivos e que podem abrir margem para arbitrariedades, inclusive da forma como pode se dar esse monitoramento. Ainda, a própria reincidência, isto é, o cometimento de novo crime, já constitui condição que gera falta grave e, portanto, é previsto na legislação como causa de regressão de regime. Assim, inserir a mesma previsão dentre as competências do DEPEN gera altíssima possibilidade de dupla penalização.
Por esses motivos, apesar de reconhecer a importância e o potencial desencarcerador da nova Lei nº 13.769, de 19 de dezembro de 2018, o ITTC avalia com preocupação as novas condições criadas para o acesso aos direitos previstos, que sequer são exigidas a qualquer outra pessoa condenada ou acusada de crimes e que não possuem relação com o fato de serem mães, gestantes, lactantes.
*Maria Clara D’Ávila é advogada e pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do ITTC.