Há mais de 20 anos o ITTC atua em defesa dos direitos das pessoas privadas em liberdade, em especial de mulheres e migrantes. Um dos resultados deste trabalho é o banco de dados sobre mulheres migrantes em conflito com a lei, fruto dos atendimentos realizados nas penitenciárias pelo então Projeto Estrangeiras, agora denominado Projeto Mulheres Migrantes em sua versão ampliada.
Mesmo com a constante reivindicação de direitos por parte das organizações da sociedade civil e do poder público ao longo dos anos, pessoas privadas de liberdade continuam a sofrer uma série de violações de Brasil, especialmente quanto ao direito à saúde. Estas violações, que decorrem das condições insalubres e inóspitas do cárcere, foram exacerbadas e evidenciadas por conta da pandemia de COVID-19, mas refletem problemas que persistem há anos.
Assim, para a nona edição do boletim, apresentamos alguns dados referentes às questões de saúde relatadas por mulheres migrantes em conflito com a lei, lembrando que esses dados foram coletados em período anterior à pandemia.
Em texto anterior, apresentamos alguns pontos mais gerais acerca do encarceramento no Brasil e no mundo, que pode ser acessado aqui.
Nota metodológica: Desde 2008 o projeto aplica sistematicamente questionários com as mulheres migrantes atendidas nas unidades prisionais. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionários com 1.493 mulheres. Entretanto, os gráficos abaixo não necessariamente totalizam esse número, uma vez que nem sempre elas respondem a todas as questões.
Isso ocorre porque o questionário é feito em um momento de acolhimento, e as mulheres têm o direito de não responder, sem que isso comprometa o atendimento. Além disso, o questionário passou por ajustes ao longo dos anos, e algumas questões foram inseridas posteriormente, como a pergunta sobre uso de medicamento contínuo.
Problemas de saúde entre as mulheres migrantes
Do total de 1.436 mulheres entrevistadas no período de 2008 a 2019 e com informações disponíveis, 58% relataram estar enfrentando algum problema de saúde. Tendo em vista que elas estavam presas há poucos meses no momento de aplicação do questionário, consideramos que muitas delas já apresentavam tais problemas antes da prisão.
O fato da maioria das mulheres apresentarem algum problema de saúde no período inicial do cumprimento da pena converge com estudos que apontam maior propensão da população prisional a apresentar problemas de saúde, principalmente por conta de quadros de vulnerabilidade socioeconômicos anteriores ao cárcere.
Situações de vulnerabilidade associadas a problemas de saúde da mulher ou de algum familiar constituem, inclusive, uma das razões pelas quais as mulheres migrantes aceitam ou são coagidas a exercer o papel de mulas. Elas se arriscam nessa função na tentativa de obter renda para tratamento médico em seus países de origem, que diferentemente do Brasil, não contam com um sistema de saúde universal e gratuito.
A prevalência de mulheres com algum problema de saúde independe da nacionalidade. O gráfico abaixo indica a porcentagem de mulheres com algum problema de saúde entre as principais nacionalidades das entrevistadas. Com exceção da Venezuela, pelo menos metade das mulheres dos países selecionados relataram ter algum problema de saúde, com destaque para a África do Sul (66%), Espanha (63%) e Bolívia (59%).
Os problemas de saúde também parecem acometer mulheres migrantes em situação de cárcere independente da idade. Dentre as mulheres com algum problema de saúde e informações disponíveis, 33% delas têm entre 35 a 45 anos, mesma porcentagem para jovens com até 29 anos (informações detalhadas na tabela abaixo).
A diferença na média de idade do total de mulheres entrevistadas no período analisado e daquelas que apresentam algum problema de saúde é de apenas 2 anos, sendo 36 anos a média de idade no momento da prisão deste último grupo, enquanto a idade média do total de mulheres era de 34 anos.
O principal problema de saúde relatado é a hipertensão, seguido por problemas respiratórios, com destaque para a asma, e por problemas gastrointestinais, em especial a gastrite.
Há uma variedade de problemas ginecológicos mencionados pelas mulheres, passando por miomas ou cistos no ovário, questões relacionadas ao ciclo menstrual, complicações decorrentes do parto ou até mesmo de um aborto espontâneo.
Além dos problemas físicos, vale destacar a alta incidência de problemas psicológicos, como depressão, ansiedade e insônia. Pensando nos impactos do isolamento na saúde mental, estudos apontam a importância do vínculo familiar como fator de proteção para a saúde mental das pessoas privadas de liberdade.
Tendo em vista a condição das mulheres migrantes, o cárcere representa uma ruptura brusca do vínculo familiar, especialmente das mulheres em relação aos seus filhos, que costumam residir em seus países de origem. Muitas delas dependem da intermediação de instituições como o ITTC para manter contato com seus familiares por meio de cartas enquanto estão em regime fechado ou semiaberto.
Na prática, o direito a visitas previsto na Lei de Execução Penal não contempla grande parte das mulheres migrantes, visto que seus familiares e amigos costumam residir em outros países. Isso constitui não só uma violação de direitos como também pode impactar negativamente a saúde mental dessas mulheres a médio e longo prazo.
Uma alternativa seria a adoção de visitas por videoconferências, que inclusive estão sendo adotadas por algumas penitenciárias como medida emergencial por conta da proibição de visitas presenciais durante a pandemia. Visando a garantia de direitos de pessoas migrantes, essa medida poderia se tornar regra para aquelas que não têm familiares residentes no Brasil ou até mesmo próximos à região da penitenciária.
Além de quadros já diagnosticados que constam no gráfico, as mulheres também relataram uma variedade de sintomas e dores em locais específicos que demandariam uma avaliação médica para identificar o problema.
Acesso à saúde na prisão
Segundo o relatório Towards a health-informed approach to penal reform, o cárcere é um ambiente que pode tanto criar novos problemas de saúde como agravar aqueles existentes, dadas as condições materiais precárias, bem como o difícil acesso a serviços de saúde adequados e a tratamentos com maior nível de complexidade.
De acordo com o Infopen Mulheres 2017, cerca de 25% das mulheres custodiadas no período analisado estavam em unidades sem módulo de saúde. Apesar da Lei de Execução Penal determinar que pessoas privadas de liberdade devem ser encaminhadas para outro local quando o estabelecimento penal não dispor das condições necessárias ao atendimento de saúde, é difícil mensurar quantas pessoas de fato conseguem acessar tal direito devido a carência de dados. Não são raros relatos de pessoas que não conseguem acessar serviços de saúde externos por conta da falta de escolta e/ou pelos procedimentos burocráticos necessários.
Independente de ter algum problema prévio ou não, a assistência à saúde é um direito de todas as pessoas privadas de liberdade no país, sejam elas brasileiras ou não. Contudo, fatores como superlotação e precarização de políticas públicas impedem que elas recebam um tratamento digno, seja na área de saúde, educação ou trabalho, fazendo com que o encarceramento intensifique condições de vulnerabilidade pré existentes e/ou crie novas.
Em relação às mulheres migrantes em conflito com a lei entrevistadas pelo ITTC entre 2008 a 2019 e com informações disponíveis, constatamos que 40% delas não havia recebido assistência médica até o momento de aplicação do questionário.
Ainda que este dado esteja disponível sobre uma pequena parcela das mulheres (318 das 1.493 mulheres com questionários aplicados entre 2008 a 2019), ele é um indicativo da dificuldade que mulheres migrantes enfrentam para acessar serviços de saúde nos meses iniciais da prisão.
Mesmo que elas eventualmente consigam receber assistência médica ao longo do cumprimento da pena em regime fechado ou semiaberto, muitas vezes é necessária a intervenção da Defensoria Pública para garantir esse direito. A partir do atendimento direto a essa população, ao longo dos anos o ITTC auxiliou na intermediação com os defensores. Além disso, a questão do idioma também pode dificultar o acesso adequado aos serviços de saúde dessas mulheres dentro e fora do cárcere, pois nem todas falam português ou dominam o vocabulário necessário para compreender assuntos médicos.
O encarceramento também dificulta a continuidade de tratamentos que as mulheres faziam anteriormente. Entre as mulheres com algum problema de saúde e com informações disponíveis, 67% faziam algum tratamento antes da prisão, totalizando 506 casos. Desse total, obtivemos informações quanto a continuidade ou não do tratamento após a prisão para 189 mulheres. Destas, apenas 37% continuaram o tratamento após serem presas.
Apesar de ser um dever do Estado prover assistência médica, farmacêutica e odontológica às pessoas privadas de liberdade, a falta de medicamentos no sistema prisional tem sido comum nos últimos anos. Por isso muitas pessoas recorrem aos familiares para obter os remédios necessários. Contudo, essa é uma alternativa pouco factível para mulheres migrantes, não só por conta da distância geográfica dos familiares, que dificulta o envio de suprimentos básicos através dos “jumbos”, mas também pela vulnerabilidade econômica das famílias em seus países de origem.
Entre as 152 mulheres entrevistadas nos anos de 2018 e 2019 e com informações disponíveis, constatamos que 38% delas faziam uso de algum medicamento contínuo. Destas, 42% estavam recebendo o medicamento regularmente até o momento de aplicação do questionário.
Outra questão relacionada à saúde e que se intersecciona com o tema da maternidade é o acesso ao pré natal. No período de 2015 a 2019, 23 mulheres estavam grávidas no momento de aplicação do questionário, destas 17% ainda aguardavam o acompanhamento pré natal.
Considerações finais
As informações apresentadas até aqui fornecem alguns pontos de reflexão a respeito das condições de saúde de mulheres migrantes em conflito com a lei, bem como as situações precárias de assistência que caracterizam o sistema prisional brasileiro.
Ainda que os dados sejam de teor amostral, visto que não estão disponíveis para a totalidade de mulheres migrantes atendidas entre 2008 a 2019, a partir deles é possível mapear algumas das dificuldades recorrentes quanto aos problemas de saúde e ao acesso a tratamentos e/ou medicação.
Como apresentado, grande parte das mulheres já apresentavam problemas de saúde nos meses iniciais de prisão, indicando que provavelmente muitos deles foram desenvolvidos em período anterior ao cárcere. Entretanto, o encarceramento pode agravar condições pré existentes, pois nem todas as mulheres conseguem continuar tratamentos de saúde iniciados quando estavam em liberdade ou até mesmo receber medicação da qual faziam uso contínuo. Além disso, a prisão pode contribuir para o aparecimento de diversos problemas de saúde, tanto do ponto de vista físico como mental.
Estes pontos mais uma vez revelam o caráter essencialmente violador do cárcere e a importância de medidas desencarceradoras durante e após o contexto de pandemia. Além de não contribuir para a redução da criminalidade, o encarceramento em massa decorrente da política de drogas adotada no Brasil desde 2006 transformou as prisões num local de risco para a saúde das pessoas assistidas, seus familiares e todos os funcionários do sistema penitenciário. Tais riscos foram levados ao extremo durante a pandemia de COVID-19.
Diante da resistência do sistema de justiça em adotar alternativas penais e/ou medidas desencarceradoras, é preciso reivindicar que o Estado ofereça condições mínimas de dignidade para as pessoas em privação de liberdade, respeitando assim direitos fundamentais garantidos pela Constituição.
Também é importante pontuar que, no caso de pessoas migrantes, a dificuldade para acessar serviços de saúde persiste após a prisão, pois além da barreira linguística, falta de documentação e carência de informações sobre seus direitos, a condição de migrantes e egressas do sistema prisional pode fazer com que elas sejam vítimas de xenofobia e/ou outras formas de preconceito ao procurar tais serviços, como o racismo institucional. Assim, outro desafio é monitorar o acesso de pessoas migrantes, egressas ou não, às políticas públicas disponíveis, dentre elas o acesso aos serviços de saúde.