O encarceramento em massa tem sido uma política adotada por diversos países, apesar de especialistas apontarem que não há relação causal entre aumento de encarceramento e redução da criminalidade. O Brasil atualmente ocupa o terceiro lugar no ranking de países com maior população prisional, ficando atrás apenas da China e dos Estados Unidos, respectivamente.
Apesar das mulheres representarem cerca de 7% da população prisional global, o encarceramento feminino no mundo aumentou mais de 50% no período de 2000 a 2017, ao passo que entre a população masculina esse aumento foi de aproximadamente 20%. O relatório Global Prison Trends de 2019 aponta que grande parte das mulheres são presas por crimes não violentos e que o endurecimento das penas para infrações relacionadas ao tráfico de drogas em alguns países teve um peso desproporcional sobre as mulheres, como é o caso do Brasil.
Segundo o relatório mais recente do World Prison Brief a respeito do encarceramento feminino, o Brasil ocupa a quarta posição entre os países com maior número de mulheres presas. Em primeiro lugar estão os Estados Unidos, que concentram cerca de 30% do total de mulheres presas no mundo.
O aumento significativo no número de mulheres em conflito com a lei ao redor do mundo nas últimas décadas demandou um olhar mais atento para as especificidades de gênero dentro do sistema prisional. Nessa perspectiva, as Regras de Bangkok foram um passo importante para reconhecer essas especificidades, tendo em vista a garantia dos direitos das mulheres em privação de liberdade. Contudo, por representarem uma pequena parcela da população prisional em muitos países, ainda é difícil obter informações detalhadas sobre encarceramento feminino em nível nacional.
Neste sentido, apesar das inúmeras diferenças no âmbito jurídico, social e econômico, é importante olhar para o encarceramento feminino em países como o Brasil e os Estados Unidos a fim de investigar como os países que mais encarceram no mundo lidam com a questão de gênero no sistema prisional.
Esta reflexão é importante não só do ponto de vista da construção de conhecimento, mas também para identificar violações recorrentes e mapear boas práticas, tendo como objetivo o desencarceramento e a garantia dos direitos das mulheres. Assim, a seguir comparamos cinco pontos sobre encarceramento feminino no Brasil e nos Estados Unidos.
Escassez de dados
Um desafio comum aos dois países é a escassez ou a fragilidade de dados a respeito de mulheres em conflito com a lei.
Desde 2014 o Brasil conta com um relatório específico sobre as mulheres em privação de liberdade, elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Este relatório é oficialmente denominado de Levantamento Nacional de Informações, conhecido comumente como Infopen Mulheres, e é uma iniciativa relativamente recente em comparação ao Infopen com dados sobre toda a população prisional. Apesar de ser um passo importante para acompanhar e orientar políticas públicas, ele ainda é um material frágil e com diversas lacunas, pois muitas informações relevantes, como a presença e quantidade de filhos, estão disponíveis apenas para uma pequena parcela das mulheres presas. Outra questão é a periodicidade das informações, pois para cada relatório produzido costuma haver um intervalo de dois anos entre a coleta de dados e a sua publicação. Além disso, não há uma obrigatoriedade para que as unidades prisionais preencham os formulários para a coleta das informações.
A dificuldade para encontrar dados específicos e atualizados sobre mulheres encarceradas também está presente nos Estados Unidos, conforme indicado no Women’s Mass Incarceration: The Whole Pie 2019, elaborado pelo Prison Policy Initiative. Apesar de ser publicado em 2019, os dados oficiais mais recentes encontrados pelos pesquisadores datam majoritariamente de 2017.
Além disso, outro desafio para as organizações que produzem conhecimento sobre esse tema é a descentralização do sistema de justiça estadunidense, fazendo com que pesquisadores tenham que localizar e criar metodologias para agrupar os dados dos sistemas estaduais e federais. Neste quesito, o Infopen está um passo à frente, pois contém informações agrupadas em nível nacional e também por unidade federativa.
Aumento do encarceramento é maior entre as mulheres
Tanto o Brasil como os Estados Unidos tiveram um aumento expressivo no número de pessoas presas nas últimas décadas, lembrando que nos Estados Unidos esse “boom” tomou forma a partir do final da década de 1970, ao passo que no Brasil o aumento acentuado ocorreu a partir dos anos 2000. Apesar dessas diferenças, nos dois casos o aumento proporcional da população prisional continua sendo mais expressivo entre as mulheres.
No Brasil, no período de 2000 a 2016 houve um aumento de mais de 600% na população prisional feminina, enquanto entre os homens esse aumento foi de aproximadamente 200%, o que também não deixa de ser um dado alarmante.
Por sua vez, nos Estados Unidos houve um aumento de aproximadamente 8% no encarceramento de homens no mesmo período, enquanto entre as mulheres foi superior a 30%. Apesar das recentes iniciativas visando reduzir o número de pessoas presas nos Estados Unidos, elas parecem ter pouco impacto no desencarceramento de mulheres.
Guerra às drogas tem maior impacto sobre as mulheres
Segundo o Infopen Mulheres mais recente, cerca de 60% das mulheres em privação de liberdade no Brasil em 2017 foram acusadas de crimes relacionados ao tráfico de drogas, enquanto entre os homens esse percentual era de aproximadamente 30% no mesmo ano.
Já nos Estados Unidos, ao agrupar os dados sobre as cadeias locais, prisões estaduais e federais disponibilizados pelo relatório da Prison Policy Initiative, é possível identificar que infrações relacionadas ao comércio ou ao uso de drogas foram responsáveis pela prisão de aproximadamente 23% das mais de 200.000 mulheres presas no país. É importante ressaltar que esse percentual varia conforme o tipo de estabelecimento, sendo de 17% entre as mulheres mantidas nas cadeias locais, 24% nas prisões estaduais e 44% nas prisões e cadeias federais. Assim como no Brasil, esses percentuais também são menores entre os homens.
Outro ponto que aproxima os dois países é a criminalização de pessoas que fazem uso de drogas. Apesar da legalização da maconha em alguns estados, nos Estados Unidos as mulheres continuam a ser mais criminalizadas pelo uso de drogas, conforme o relatório Women, Prison and Drug War, feito pela Drug Policy Alliance.
No Brasil, apesar da legislação sobre drogas prever a distinção entre pessoa usuária e traficante, é comum o encarceramento de usuárias, especialmente mulheres, devido à falta de critérios objetivos para estabelecer essa diferença. No contexto brasileiro, soma-se ainda o endurecimento da pena para pequenos traficantes, agravando os níveis de vulnerabilidade de mulheres que exercerem a função de mulas na tentativa de obter alguma renda para seu sustento e de seus familiares.
Recorte racial
O aumento significativo no encarceramento feminino no Brasil está fortemente relacionado à nova política de drogas, adotada a partir de 2006. Esta política foi seguida por um recorte racial, criminalizando majoritariamente mulheres negras. Segundo o último Infopen Mulheres, cerca de 64% das mulheres presas no Brasil são negras, sendo 48% identificadas como pardas e 15% pretas, enquanto na população brasileira o percentual de mulheres negras é de 52%.
Além disso, é importante enfatizar que no Brasil, país onde mais de 800.000 pessoas se identificam como indígenas de acordo com o último censo, o sistema de justiça criminal não fornece muitos dados sobre essa população. Embora o Infopen afirme que 0,28% das mulheres na prisão são indígenas, esses dados podem ser subestimados.
Conforme o relatório da Drug Policy Alliance, também é possível identificar um recorte racial nas prisões envolvendo uso e comércio de drogas nos Estados Unidos. Ainda que essas práticas ocorram em taxas similares entre as diferentes raças e etnias, mulheres negras têm quase duas vezes mais chances de serem criminalizadas pelo uso ou comércio de drogas do que mulheres brancas. Já as mulheres latinas têm 20% mais chances de serem penalizadas por delitos desse tipo em relação às brancas.
Essas informações indicam que a questão racial é uma variável fundamental para analisar as relações entre encarceramento feminino e tráfico de drogas nos dois países.
Maternidade
Outra questão compartilhada pelas mulheres encarceradas no Brasil e nos Estados Unidos é a maternidade. No Brasil, mais de 70% das mulheres presas são mães e a maioria costuma ser a principal ou a única responsável pelos filhos antes da prisão.
Já nos Estados Unidos, mais de 50% das mulheres encarceradas têm filhos, e esse percentual chega a 80% quando olhamos somente para as cadeias locais, que são os estabelecimentos com maior concentração de mulheres em privação de liberdade no país.
Assim como no contexto brasileiro, a maioria das mulheres costumam ser as principais e muitas vezes únicas responsáveis pelos filhos, conforme o diagnóstico da Drug Policy Alliance. Além disso, o relatório também indica graves violações às mulheres grávidas em privação de liberdade nos Estados Unidos, como a falta de acompanhamento pré natal e o uso de algemas durante o parto.
No Brasil, o uso de algemas durante o parto era algo recorrente até pouco tempo, quando foi aprovada a lei Nº 13.434/2017, proibindo essa prática. Entretanto, ainda há relatos de violações desse tipo mesmo após sua proibição. A falta de assistência médica, em especial acompanhamento pré natal, também faz parte da série de violações sofridas pelas gestantes submetidas ao sistema prisional brasileiro.
Ainda que as políticas de saúde e assistência no Brasil e nos Estados Unidos possam variar drasticamente, a questão da maternidade faz com que seja necessário analisar os impactos do encarceramento feminino não só sobre as mulheres, mas também sobre seus filhos.
Neste sentido, o Marco Legal da Primeira Infância foi uma passo importante do Estado brasileiro visando garantir o vínculo familiar, apesar das suas limitações e certa resistência de atores do judiciário para sua aplicação. A normativa prevê a substituição da prisão provisória em prisão domiciliar para gestantes, mulheres com filhos até 12 anos ou responsáveis por pessoas portadoras de alguma deficiência.
A partir dos relatórios consultados sobre encarceramento feminino nos Estados Unidos não foi possível identificar medidas semelhantes, pelo menos não em nível nacional. Contudo, há iniciativas locais desenvolvidas pela sociedade civil em parceria com o poder público que visam desencarcerar mulheres. É o caso do projeto Women In Recovery, realizado na cidade de Tulsa, Oklahoma, estado que mais encarcera mulheres no país. O projeto é uma alternativa à prisão de mulheres condenadas por delitos relacionados ao uso ou ao comércio de drogas.
Considerações finais
Os dados apresentados até aqui são apenas um ponto de partida sobre questões de gênero e encarceramento em massa que perpassam as fronteiras nacionais.
A partir das informações disponíveis, destacamos a importância de olhar para o encarceramento feminino no Brasil e nos Estados Unidos de forma interseccional, levando em conta não só as especificidades de gênero, com destaque para a maternidade, mas também questões de raça e etnia. Outro ponto relevante é analisar como a política de drogas contribuiu para o aumento do encarceramento feminino.
Considerando que os Estados Unidos e o Brasil estão entre os países com maiores índices de encarceramento no mundo, é imprescindível que países nessa situação contem com a produção padronizada e periódica de dados a nível nacional, contendo informações não só a respeito da população prisional total, mas também específicas em relação às mulheres, pessoas negras, migrantes, etc.
Há ainda inúmeras outras dificuldades enfrentadas por mulheres em privação de liberdade que podem variar substancialmente conforme o sistema de justiça adotado em cada país. Estas especificidades locais não devem ser menosprezadas, não só para reverter quadros violadores, mas também para evitar que demais países importem políticas ineficazes e violadoras de direitos.
Gabriela Menezes – Pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
Violeta Lopes – Estagiária do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
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