Neste Dia Internacional da Pessoa Imigrante, comemorado dia 18 de dezembro, o ITTC conversou com a sul africana zulu Agnes Dolly, presa no Brasil em 2014 e foi acompanhada pelo Projeto Estrangeiras. Ela conseguiu transformar sua vida depois de conquistar a liberdade em 2016. Atualmente dá aulas particulares de inglês ensinando pessoas brasileiras sobre as diversidades da cultura africana.
A partir da conversa com Agnes, propomos refletir sobre como histórias de vida de pessoas migrantes são impactadas por políticas de criminalização da migração e das drogas, assim como os desafios e os pontos positivos de viver no Brasil, levando em consideração a afirmação de que migrar é um direito.
Confira abaixo a entrevista:
ITTC: Pode contar um pouco sobre você e sobre sua vinda ao Brasil?
Agnes: Meu nome é Agnes Dolly, tenho 46 anos e sou mãe de duas filhas, de 26 e 22 anos. Eu vim para o Brasil em 2014 e fui presa por tráfico de drogas. Eu não gosto de dizer a razão pela qual eu fiz isso porque parece que estou justificando o que aconteceu. O importante é que nunca vale a pena, independente da razão. As consequências são muito altas, principalmente porque não envolve apenas você, mas outras pessoas também. Como uma mãe solteira que estava tentando sobreviver, isso afetou ainda mais as minhas filhas, minha família sofreu muito. Eu não recomendo a ninguém fazer o que eu fiz.
ITTC: Quanto tempo você permaneceu em situação de prisão aqui em São Paulo?
A: Eu fiquei presa por 1 ano e 11 meses. [Sentenciada a 4 anos]. No primeiro momento, tudo paralisou. Achei que nunca mais ia sair. Se você conseguisse falar com alguém que me conhece, ela diria que eu sou a última pessoa que poderia ir presa. No primeiro dia na PFC [Penitenciária Feminina da Capital], eu ouvi barulhos e achei que ia ter briga. Aí descobri que o barulho era bonito: era música, cantoria. Eu estava maravilhada de ouvir sons que eu conhecia, na minha língua. E pensei: “uau, estou mesmo na prisão?”. Mas não foi fácil. Eu deixei duas filhas para trás.
ITTC: Como foi sua relação com outras mulheres brasileiras e não brasileiras que conheceu quando esteve presa?
A: Eu fiz amizades com quase todo mundo! Eu lembro da primeira menina que conversou comigo. Ela disse: “está tudo bem, nós vamos te ajudar, vão ter pessoas que virão aqui para e ajudar a entrar em contato com a sua família”. Eu fiquei na cela com uma menina de Goiânia, outra da França. Eu sinceramente não me lembro de nada sobre elas, era coisa do momento. E depois veio essa moça da Namíbia. Eu disse para ela a mesma coisa que tinham me dito – “se você quiser conversar sobre qualquer coisa, estou aqui”. E foi assim que a nossa amizade começou. Depois eu fui para o semiaberto e ela ficou. Ela sempre estava lá para conversar, para ouvir qualquer bobagem que eu tinha pra dizer. Ela é a única pessoa de quem eu lembro e nunca vou me esquecer.
ITTC: E os agentes penitenciários?
A: Quando eles vão te revistar, você tem que mostrar suas partes íntimas. Essa foi a coisa mais humilhante que eu já passei. Toda vez que você sai da prisão e volta para lá precisa passar por isso. E eu ouvi que até os visitantes têm que fazer isso. Imagina, sua mãe, sua avó vindo te visitar…? E não foi fácil também devido à barreira linguística. Você está doente, precisa pedir por uma aspirina e não consegue se comunicar.
ITTC: E no seu julgamento, você teve um tradutor? Conseguiu entender tudo?
A: Sim, o julgamento foi traduzido para o inglês. A moça era muito legal, quando eles não entendiam o que eu estava dizendo, ela pedia para eu repetir e explicar melhor.
ITTC: Quando você teve concedido o direito de progressão da pena ao regime semiaberto, você teve oportunidade de acessar outros direitos como saída temporária ou trabalho externo?
A: Eu consegui todos os benefícios do semiaberto, e muitas pessoas não têm essa oportunidade. Mas eu estava muito nervosa. Saí para um mundo do qual eu não sabia nada a respeito. As saidinhas ajudaram: quando eu fui para o semiaberto já sabia pegar ônibus, chegar no Brás. Eu tive pessoas que conheci lá dentro da prisão e estavam abertas para me receber aqui fora. As igrejas também estavam lá e ajudaram muito.
ITTC: Como se sentiu ao ligar para sua família a primeira vez que saiu?
A: Foi muito emocionante, especialmente para as minhas crianças. Elas repetiam “eu só precisava ouvir sua voz, ver que você estava viva”. Elas não acreditavam no que eu contava quando estava lá dentro. Achavam que eu só estava tentando deixá-las bem dizendo que eu estava bem. Mas eu estava bem! Na vida tem horas boas e horas ruins, e eu preciso atravessar isso. Mas o que me fez aguentar foi pensar que eu estava lá de passagem, não de forma permanente. Um dia ia acabar. É o que dizem: “o que não te mata, te deixa mais forte”.
ITTC: Foi difícil encontrar um trabalho depois que você saiu da prisão? Sentiu algum preconceito no processo?
A: Foi muito difícil, porque você tem que ter toda a documentação primeiro. Eu procurei por um emprego por mais de três meses. Eu tive a sensação de que, em alguns lugares, se eu fosse brasileira conseguiria o trabalho ou um cargo melhor. A questão do salário é no mínimo frustrante, porque agora tenho que pagar o aluguel e comprar comida. Mas eu estou livre, e não tem nada melhor que isso.
ITTC: Você teve problemas psicológicos na prisão, como depressão? Chegou a tomar algum remédio? Ouviu coisas similares das outras meninas?
A: Eu não tive. Mas na verdade era muito sério, muitas meninas não conseguiam lidar com a depressão. Lá acontecem muitas mudanças, boas e ruins. Algumas garotas entravam e não bebiam nem fumavam, mas começaram lá. Não é meu caso, mas eu entendo a posição delas, talvez seja a forma de se adaptarem. As pessoas realmente precisam de assistentes sociais lá. Ás vezes nem é porque você está presa, mas algo com a sua mente mesmo.
ITTC: E agora, você quer ficar no Brasil ou quer voltar para o seu país?
A: Quando eu era pequena, tinha um sonho de ter três filhos antes de completar 30 anos, porque aos 40 eles já estariam crescidos e eu poderia começar a viajar pelo mundo. A minha primeira viagem infelizmente me levou para um lugar obscuro. Mas foi um começo para mim [risos]. Eu ainda tenho esse sonho. Antes eu queria só viajar, mas o que aconteceu me deu um propósito. Eu posso viajar e fazer alguma coisa, mudar a vida de alguém. Mas o primeiro lugar que eu vou é para casa, ver minha família.