Migrantes em conflito com a lei: Indicadores socioeconômicos entre mulheres não brancas e brancas/amarelas na América Latina e Caribe

O ITTC atua há mais de 20 anos com a temática da justiça criminal, dando ênfase principalmente às questões relacionadas ao encarceramento feminino. Desde 2001 a instituição trabalha com mulheres migrantes em conflito com a lei, e desde então já atendeu mais de 1.500 mulheres dentro do sistema prisional paulista. Este trabalho resultou em um banco de dados, que além de auxiliar as atividades cotidianas da equipe, também visa produzir conhecimento sobre mulheres migrantes e contribuir para a reivindicação de direitos deste grupo.

No Brasil, a questão racial está intrinsecamente relacionada ao encarceramento em massa, visto a sobrerrepresentação de pessoas negras na população carcerária. Além disso, a política de “guerra às drogas” contribui não só para o encarceramento massivo de pessoas negras, em especial de mulheres, mas tem seguido uma lógica de genocídio quando analisamos seus efeitos sobre a vida de jovens negros(as).

Diante da diversidade cultural e das especificidades locais, consideramos um desafio analisar a situação de mulheres migrantes em conflito com a lei a partir de um recorte étnico-racial, ainda que tomemos como base apenas mulheres latino-americanas e caribenhas. Apesar das dificuldades, fizemos um esforço para trabalhar com categorias étnico-raciais entre esse grupo e apresentamos em detalhes na primeira parte do boletim.

Nota metodológica: O projeto aplica questionários sistematicamente com as mulheres migrantes atendidas nas unidades prisionais desde 2008. É importante pontuar que os questionários passaram por mudanças ao longo do tempo, e algumas perguntas foram inseridas posteriormente.

No período de 2015 a 2019, o ITTC aplicou questionário com 351 mulheres latino-americanas e caribenhas. Conforme a análise realizada no boletim anterior, a partir dos dados de autodeclaração, agrupamos 243 dessas mulheres no grupo de “não brancas” e 81 no grupo de brancas + amarelas. Entretanto, os gráficos abaixo nem sempre totalizam esses números, pois nem sempre elas respondem todas as questões. Isso acontece porque o questionário é feito em um momento de acolhimento, e as mulheres têm o direito de não responder, sem que isso comprometa o atendimento.

Em linhas gerais, na primeira parte do boletim sobre questões étnico-raciais entre mulheres migrantes em conflito com a lei concluímos que, entre as 341 mulheres latino-americanas e caribenhas entrevistadas no período de 2015 a 2019 e com respostas disponíveis, 71% se enquadram no grupo de não brancas, enquanto 24% delas pertencem ao grupo brancas + amarelas, 4% se identificaram com outras categorias e 1% não souberam responder.

No primeiro texto apresentamos em detalhes as justificativas para trabalhar com as categorias “não brancas” e “brancas + amarelas”, mas vale retomar que no grupo de “não brancas” estão mulheres que usaram as seguintes categorias para autodeclaração: morenas, trigueñas¹, pardas, mestiças, mulatas, negras, pretas, indígenas, castanha, canela, marrom e café.

Diante das desigualdades socioeconômicas nos países da América Latina e Caribe, especialmente entre pessoas brancas e aquelas com ascendência africana e/ou indígena, nesta segunda parte do boletim comparamos alguns indicadores entre mulheres que inserimos na categoria “não brancas” e “brancas/amarelas”.

INDICADORES SOCIOECONÔMICOS ENTRE MULHERES NÃO BRANCAS E BRANCAS/AMARELAS

Um dos primeiros indicadores que nos permite observar as desigualdades entre mulheres não brancas e brancas/amarelas de origem latino-americana e caribenha é a escolaridade. Entre as mulheres não brancas, 3% delas nunca frequentaram a escola, ao passo que entre as mulheres brancas/amarelas essa opção não aparece.

As mulheres brancas/amarelas apresentam índice maior de escolaridade, visto que 29% delas chegaram a cursar, mas não necessariamente concluíram, o ensino superior. Já entre as mulheres não brancas, apenas 16% alcançaram esse nível de escolaridade.

É importante ressaltar, contudo, que níveis mais elevados de escolaridade, seja entre mulheres brancas, amarelas ou não brancas, não são um determinante na vida socioeconômica dessas mulheres. Resguardando as especificidades das realidades socioeconômicas e as desigualdades de gênero de cada país, é comum que até mesmo mulheres com ensino médio completo ou com entrada no ensino superior encontrem dificuldades para se inserir no mercado formal de trabalho e tenham problemas financeiros nos seus países de origem.

Em relação à idade, mulheres não brancas costumam ser um pouco mais velhas, sendo 55% deste grupo mulheres com mais de 29 anos, ao passo que entre brancas/amarelas este percentual é de 49%.

De forma geral, mulheres migrantes em conflito com a lei costumam ter um perfil mais maduro em relação às brasileiras em privação de liberdade, e a idade não parece ser um fator determinante para outras variáveis. Por exemplo, muitas mulheres foram enganadas e viajaram para o Brasil em função de uma falsa proposta de trabalho e uma das nossas hipóteses era de que a idade poderia estar associada ao conhecimento ou não dos reais motivos da viagem. Contudo, ao analisar os dados internos constatamos que entre as mulheres que foram enganadas há taxas similares de jovens e mulheres mais maduras.

A questão da maternidade aparece novamente como uma questão universal às mulheres migrantes em conflito com a lei, independente da raça/cor/etnia. Cerca de 8 entre cada 10 mulheres têm filhos, sejam elas do grupo de não brancas ou brancas/amarelas.

Conforme indicado no boletim sobre maternidade no cárcere, após a prisão das mulheres migrantes atendidas pelo ITTC, seus filhos costumam ficar sob os cuidados de algum parente, amigo ou com os avós maternos. Há diversas razões para que em muitos casos os filhos fiquem com algum parente ou amigo em vez dos avós maternos, como a localização da mãe e da criança antes da prisão – especialmente em função das dinâmicas de migração seguidas pelas mulheres e seus familiares -,  a idade dos avós e o fato deles já terem falecido.

Olhando para as mulheres latino-americanas e caribenhas, é possível notar que a alternativa de deixar os filhos sob os cuidados dos avós maternos é mais limitada entre mulheres não brancas, pois quase 1/4 (23%) delas não têm mãe viva e 34% não têm pai vivo. Já entre as mulheres brancas/amarelas, o índice daquelas que têm mães falecidas é de 18% e com pais falecidos é de 26%. Vale pontuar ainda que algumas mulheres podem ter pais vivos e não manter ou nunca ter tido contato com eles, tornando a figura materna a principal referência dessas mulheres para o cuidado dos filhos e outras formas de apoio.

VIOLAÇÕES E ACESSO A DIREITOS ENTRE MULHERES NÃO BRANCAS E BRANCAS/AMARELAS 

Além de indicadores socioeconômicos, é importante comparar também as violações sofridas pelas mulheres migrantes em conflito com a lei, como a violência institucional no momento da prisão. Entre as mulheres latino-americanas e caribenhas, 29% das mulheres não brancas sofreram alguma violência institucional, ao passo que entre as brancas/amarelas esse percentual cai para 25%.

No contexto brasileiro, a violência policial é expressivamente direcionada à população negra. Contudo, os dados sobre mulheres migrantes apresentados aqui não indicam uma diferença tão acentuada entre não brancas e brancas/amarelas quanto à violência institucional.

Uma das justificativas possíveis é o fato de que a maioria das mulheres costumam ser presas pela polícia federal e não pela polícia militar, que costuma receber mais denúncias por cometer violações. Além disso, o grupo mulheres não brancas contempla uma diversidade de tons de pele que podem ser interpretados de diferentes formas no contexto brasileiro. Por fim, as mulheres não brancas e brancas/amarelas compartilham a condição comum de migrantes latino-americanas e caribenhas em conflito com a lei, podendo ser vítimas de xenofobia por parte das instituições brasileiras.

Em termos absolutos, das 351 mulheres latino-americanas e caribenhas entrevistadas no período de 2015 a 2019, 89 sofreram algum tipo de violência institucional, sendo 65 pertencentes ao grupo de não brancas, 19 brancas/amarelas e 2 inseridas na categoria “outras” conforme a autoidentificação. Na tabela a seguir, detalhamos a cor/raça das mulheres que sofreram alguma violência institucional.

Em relação à saúde, cerca de metade das mulheres indicaram ter algum problema de saúde, tanto entre as mulheres não brancas como entre as brancas/amarelas.

Todavia, entre aquelas que relataram algum problema de saúde, apenas 44% das mulheres não brancas e com informações disponíveis haviam recebido assistência médica na prisão até a data de aplicação do questionário, ao passo que entre mulheres brancas/amarelas, esse percentual sobe para 63%².

Esses dados revelam que, diante da precariedade do acesso aos serviços de saúde dentro da prisão, quando se trata de migrantes, mulheres não brancas tendem a ser as mais prejudicadas. Apesar do Infopen Mulheres apresentar algumas informações acerca do acesso à saúde, não é possível cruzar essas informações de acordo com a raça/etnia, a fim de verificar se mulheres negras têm o mesmo acesso que mulheres brancas aos já escassos serviços de saúde disponíveis no sistema prisional. Esse tipo de informação é de extrema relevância, visto que no Brasil o racismo institucional impede que a população negra tenha acesso de forma adequada aos serviços de saúde dentro e fora do sistema prisional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme indicado na primeira parte do boletim sobre a temática étnico-racial, os dados aqui apresentados são de caráter exploratório, mas fornecem alguns pontos para reflexão. Não é trivial o fato de que 71% das mulheres de origem latino-americana e caribenha entrevistadas nos últimos anos não se identifiquem como brancas.

Apontamos que, a partir dos dados disponíveis, há indícios de que mulheres não brancas aparecem como principal alvo das redes internacionais de tráfico para funções de alto risco e baixa remuneração. Por outro lado, vale a pena levantar a hipótese de que a sobrerrepresentação de mulheres não brancas também pode estar relacionada a um possível viés nas abordagens policiais, que tenderiam a privilegiar pessoas não brancas.

Além destes pontos, foi possível notar alguns indicadores que revelam as desigualdades entre mulheres brancas e não brancas em países da América Latina e Caribe, como a questão da escolaridade.

Para além das desigualdades socioeconômicas em seus países de origem, ao chegar no Brasil, mulheres migrantes em conflito com a lei são vítimas de diversas formas de preconceito e violações, como xenofobia, assédio e o estigma atribuído às pessoas que passaram pelo sistema de justiça criminal. Para as mulheres não brancas, soma-se ainda o racismo institucional, do qual são vítimas antes, durante e após a prisão.

Para este boletim, concentramos a análise em mulheres migrantes de países específicos em função do Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Contudo, não devemos esquecer das mulheres de origem africana, em especial àquelas da África do Sul, que estão entre o principal público do ITTC e que são vítimas constantes do racismo, seja na esfera individual ou institucional. Neste sentido, é fundamental que instituições que lidem com a temática da migração e/ou da justiça criminal utilizem não só recortes de gênero, mas também de raça/etnia na sua atuação.


¹  Dentre as categorias citadas espontaneamente, trigueña é a menos familiar para o contexto brasileiro. Este termo pode ter significados diversos a depender do país. Geralmente o termo é usado para se referir às pessoas negras em países como República Dominicana e Porto Rico, ao passo que no Peru esta categoria se refere às pessoas de ascendência indígena e europeia, também reconhecidas como “mestiças”.

² Não identificamos diferenças significativas no tempo de prisão entre as mulheres que já haviam recebido assistência médica e aquelas que ainda estavam aguardando atendimento.


O boletim do ‘Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei‘ é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados em colaboração com a equipe de comunicação do ITTC. Participaram dessa edição Gabriela Menezes e Violeta Pereira de Queiroz Lopez (Banco de Dados), Juliana Avila Gritti e Letícia Vieira (Comunicação).
Você também pode receber o boletim em primeira mão no sua caixa de entrada. Inscreva-se aqui.
Ilustração e gráficos: Letícia Vieira

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jul 22, 2020 | Banco de dados | 0 Comentários

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